Profa. Dra.
Luciana Marino do Nascimento
(UFAC/UFRJ)[1]
Resumo
A Revolução acreana
e extrativismo da borracha se entrelaçam como grande feitos na história da
Amazônia, de tal modo que motivaram uma série de escritas literárias e
historiográficas acerca do Acre. Há, portanto, variadas epopeias cantadas em
prosa e verso, após o longo e complexo processo de anexação do Acre ao Brasil: Epopéia
Acreana (1919), de Farias Gama; O fim da epopeia (1924), de Craveiro Costa; A Epopéia
do Acre (1964), de Sílvio Meira e A Epopéia acreana (1939), de Freitas Nobre.
Pretende-se neste trabalho, ressaltar a importância da Epopéia Acreana, de
Freitas Gama, tendo em vista ser esta a primeira obra editorada no Acre,
publicada sob a forma de folheto, apresentando 6 cantos e um epílogo.
1
Introdução
Ao falarmos o campo semântico Amazônia, nossas
referências tendem a conferir um grau de identidade à região no todo, o que se
explica pelo longo processo histórico de estabelecimento, de criação e de “invenção
da Amazônia” como processo de percepção e apropriações de imagens acerca dessa
região, imagens essas imortalizadas pelos relatos dos viajantes, pela
literatura e pela mídia. (GONDIM, 1994, p.9).
Dentro de um quadro de heterogeneidade, que é a
Amazônia, a leitura mais profícua que se pode fazer dessa região é pela via
literária. É nesse sentido, que podemos compreender os passeios literários como
mapas textuais da Amazônia.
2 Epopeia
Amazônica
Tradicionalmente, a Epopeia constitui um poema
épico, cuja narração se dá em torno de acontecimentos históricos de grande
relevância para um povo. O Epos assim
como o foi na Antiguidade de Homero ou Virgilio não é passível de realização na
nossa contemporaneidade, considerando que o épico de Homero foi composto para
ser cantado, conforme postula Staiger (1997, p. 118) : “a poesia épica no
sentido homérico não pode se repetir”. Conforme já afirmamos anteriormente, a
epopéia de Homero está relacionada à oralidade, como também à sua configuração
histórico-cultural, ou seja, Homero produziu sua obra levando em conta fatores
necessários a sociedade da sua época, cantou os costumes e as normas vigentes
em seu tempo, não podendo estes, serem aplicados à sociedade moderna.
No que tange à questão da Revolução
acreana, nota-se na historiografia oficial uma tendência para interpretar a
origem desse movimento como manifestação do sentimento antiimperialista de
Plácido de Castro e o patriotismo como mola propulsora, que tende a pregar o
“direito de ser brasileiro em território boliviano ocupado por brasileiros.” Há
todo um passado heróico criado pela historiografia, o que é reforçado pelas
epopéias escritas em torno do Acre, sejam elas:
O fim da epopéia (1924), de Craveiro
Costa; A epopéia do Acre (1964), de Sílvio Meira e A epopéia acreana (1939), de Freitas Nobre.
Vale ressaltar que a questão do
Acre, sua demarcação e sua anexação ao Brasil, se insere num contexto
internacional, pelo fato do Acre ser o possuidor de uma grande reserva de látex
em seus seringais, produto este essencial, à época, para fins de fabricação de
pneus. De fato, o território pertencia à Bolívia e não ao Brasil, se tomarmos
por base os mais variados tratados e acordos, desde a Bula Papal Intercoetera assinada
em 1493, até a cartografia da linha Cunha-Gomes
em 1898 (não considerando o Uti
Possidetis).(RANZI, 2008, p. 45-48).
A obra A Epopéia acreana, de Farias Gama, tem
como temática, a história do Acre, desde a chegada dos nordestinos à sua
anexação ao Brasil. Primeira obra publicada no Acre em 1919, sob a forma de
folheto de 39 páginas. O libreto representa um achado para o estudo da
literatura produzida no Acre, tendo em vista ser obra pioneira, não sendo
encontrada no Acre, restando apenas um exemplar na Biblioteca Pública do
Amazonas. O único texto sobre A Epopéia Acreana foi publicado no Blog
Alma Acreana (almaacreana.blogspot.com). Ressaltamos que não foi possível encontrar dados
biográficos acerca do autor.
O poemeto, termo utilizado por Gama, apresenta um
esquema único de rimas, constante ao longo do poema, sendo que o primeiro verso
rima com o terceiro, o segundo com o quarto, e o quinto com o sexto. Todas as
estrofes possuem seis versos. O folheto apresenta-se divido da seguinte forma: Esborço
– apresentação geral, na qual o autor traça um panorama histórico da Revolução;
Introdução – apresenta a narrativa da ocupação da Amazônia (VIII
estrofes); Canto I – apresenta a chegada dos nordestinos no Acre (XI
estrofes); Canto II – apresenta a narrativa do confronto entre
brasileiros e bolivianos (XII estrofes); Canto III – narrativa acerca
dos primeiros combates, a rendição dos acreanos, e depois a retomada (XIII
estrofes); Canto IV – narrativa das batalhas mais ferozes e sangrentas
(XIII estrofes); Canto V – narrativa
dos desdobramentos da Revolta (V estrofes); Canto VI – desfecho final da
Revolução e a vitória dos acreanos (XVII estrofes); Epílogo – cita o assassinato do líder Plácido de Castro (VII
estrofes).
Refazendo
todo o percurso da história do Acre em versos, com seis cantos e um epílogo, Farias Gama, anterior ao texto poético, abre
seu libreto Epopéia Acreana com o Esborço, no qual apresenta um resumo da
história que vai tratar em versos:
Um dia, inimigos de minha altivez, arrojaram-me num
cárcere. Foi então que resolvi mais amplamente servir-me desta faculdade, que
embora mal, me acompanha desde a infância – o trovar. Rebusquei o motivo. Era a
Revolta do Acre. Quis tanger a lira, mas não encontrei-a.
N.F. –
Este folheto além de ser a primeira obra literária ideiada , escrita e
editorada no Acre, foi acabada em 15 dias, ficando por isso cheio de graves
incorreções gráficas e literárias. Desculpas. (GAMA, 1919. p. 1)[2]
Elevando a história do Acre ao
caráter de uma epopeia, Farias Gama ilumina o Epos, a partir de uma sedimentação da história da conquista desse
território localizado na Amazônia Ocidental. Nesse sentido, recorremos aos
estudos de Bakthin sobre a epopéia. Mikhail Bakhtin em Questões de literatura e Estética, afirma ser este um gênero não
pertinente ao mundo moderno e contemporâneo. Segundo Bakhtin (2002), a epopeia
enquanto um gênero determinado caracteriza-se através de três traços
constitutivos: em primeiro lugar, o passado nacional épico, absoluto, serve de
objeto da epopeia; em segundo, a lenda nacional atua como fonte da epopeia e em
terceiro, o mundo épico é isolado da contemporaneidade, isto é, do tempo de seu
autor: “no mundo épico não há lugar para o inacabado,
para o que não está resolvido, nem para a problemática. A conclusão absoluta e
o seu caráter acabado – eis os traços essenciais do passado épico, axiológico e
temporal” (BAKHTIN, 2002, p. 408). Entretanto, cabe ressaltar que o teórico
russo nos aponta para a permanência e a presença do Epos na nossa
contemporaneidade. Neste
sentido, vê-se que o gênero épico reside na literatura
palimpséstica e se mantém transformado em diversas obras com intenções épicas,
nas quais o autor realiza uma pesquisa estética e histórica antes de escrever a obra. Já na
introdução, Farias Gama traz para a cena escrita, a lição dos mestres da épica,
inscrevendo em seu texto os mestres do passado:
Ai
quem dera, tivesse eu de Virgílio
ou
do alquebrado e desdilezo Homero,
de
um a graça gentil doce idílio
de
outro o trovar altiloqüente e austero,
para
em versos compor esta Epopeia
dos
Brazilios Heroes Nova Ulisseia.
(GAMA,
1919, p.5. Introdução)
As narrativas acerca da Amazônia, a
caracterizam em inúmeras obras como “inferno verde” e ao adentrar em seus
territórios constituem narrativas que se assemelhasse à uma epopeia, tendo em
vista que na Amazônia se viveu uma
verdadeira batalha da borracha. A
epopeia Amazônia não se restringiu somente às lutas pelo extrativismo da
borracha, mas merece destaque o longo e complexo processo de anexação do Acre
ao Brasil, tema de A Epopéia Acreana, de Farias Gama.
Na Amazônia se vivenciou a chegada dos
nordestinos em busca do “ouro negro”, tendo em vista que nas terras onde se
localiza o Acre havia imensos seringais,
de onde se podia extrair o látex. As terras de fato pertenciam à Bolívia
e esta não possuía meios para explorar e colonizar essa faixa de terra e com a
omissão da Bolívia, a extração da borracha era feita pelos brasileiros,
entretanto, em 1899, a Bolívia arrendou as terras do Acre para o Bolivian Syndicate. Farias Gama narra a
épica chegada dos nordestinos ao Acre:
I
Do Ceará,
do Rio Grande e muitos
estados
do Nordeste brazileiros
acossados
dos males mais fortuitos,
emigraram
aos milhares forasteiros
que assim
fujiam do torrão natal
sob o
guante da seca, o grande mal.
II
Homens
feitos em todos os rigores
da
natureza ou do trabalho insano
destemidos
audazes peleadores,
eil-os em
quatro paus transpondo o oceano.
.....................................................................
(GAMA,
1919.p.8. canto I. I e II)
De acordo
com Craveiro Costa, foi dentro de um contexto de revoltas que surgiu a figura
de Plácido de Castro, como o herói movido por sentimentos patrióticos, tendo
como objetivo a luta pela anexação do Acre ao Brasil. Segundo Correa, a
campanha do Acre assim se realizou:
Sob a liderança de Plácido de Castro, os
seringueiros brasileiros iniciam a nova
campanha de retomada do Acre ao atacar e tomar a vila de Xapuri, em 07
de agosto de 1902, para concluí-la em 24
de janeiro de 1903 com a assinatura da
carta de rendição da Bolívia após uma ofensiva no Porto do Acre. Três dias depois,
em 27 de janeiro de 1903, foi novamente proclamada a República do Acre. (CORREA
et al,2010, p. 25.)
A batalha pela Acre é descrita
por Farias Gama com contornos quase que exatos, pois segundo o autor, sua
intenção era gravar na memória uma história grandiosa de uma luta de um povo
que havia escolhido ser brasileiro: “Este
o mérito: ter condensado as narrativas dolorosas e sinceras dos veteranos da
Epopéia, esquecidos, abandonados, como o livro o será, dois minutos após o
olhar indiferente do leitor.”
A escrita de Farias Gama se mostra portadora de uma
crítica ao esquecimento daqueles veteranos que lutaram na Revolução acreana e
ao alijamento do território, conforme a última estrofe do Canto VI:
Era finda
a revolta. Dispersados,
como
feras bravias e perseguidas
os chefes
foram, por legais soldados,
em breve
eram seus feitos esquecidos
que a
Pátria vencedora na contenda
a terra
abandonou, só vê a renda.
(GAMA,
1919. p. 20)
Resolvida a questão do Acre com a
assinatura do Tratado de Petrópolis, entre Brasil e Bolívia em 17 de novembro
de 1903, esteve o Barão do Rio Branco à frente das negociações, sendo que a Bolívia entregava o
território acreano ao Brasil em troca da futura construção da estrada de ferro
Madeira-mamoré, para escoamento da produção, mais a quantia de dois milhões de
libras esterlinas. (TOCANTINS, 2001).
O libreto representa um achado para o estudo da
literatura produzida no Acre, tendo em vista ser obra pioneira, não sendo
encontrado no Acre, restando apenas um exemplar na Biblioteca Pública do
Amazonas. O único texto sobre A Epopéia Acreana, de Farias Gama foi publicado no Blog
Alma Acreana. Ressaltamos que não foi possível encontrar dados biográficos
acerca do autor e o presente texto representa um esboço preliminar de um estudo
e de uma reedição da obra a ser elaborada por nós.
Figura 1. Capa da Epopeia Acreana. Primeiro livro impresso no Acre- 1919 Cópia
Fonte: Biblioteca do Estado do
Amazonas
Referências Bibliográficas
BAKTHIN,
Mikhail. Questões de estética e de
literatura. A teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernadini et al. 5 ed. São Paulo: Ed. UNESP, 2002
CORREA,
Ana Karolina Ferreira et al. Acre: entre o fuzil e a borracha.
Revista
Discente Expressões Geográficas,
nº 06, ano VI, p. 19 – 40. Florianópolis, junho de 2010.
GAMA,
Farias. Epopeia acreana. Rio Branco-Acre,
1919. S. n.t. Cópia digitalizada do Libreto. Biblioteca do Estado do Amazonas-
Manaus- AM.
RANZI,
Cleusa Maria Damo. Raízes do Acre. 3
ed. Rio Branco: EDUFAC, 2008.
TOCANTINS,
Leandro. Formação histórica do Acre.
Brasília: Senado Federal, 2001.
STAIGER,
Emil. Conceitos fundamentais da poética.
3ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
Site Consultado
almaacreana.blogspot.com. Acesso em 01/02/2013.
*Este texto foi originalmente
apresentado como comunicação no XII Simpósio da ABRALIC- Associação Brasileira
de Literatura Comparada, no âmbito do Simpósio intitulado “Literatura, Cultura
e Identidade na/da Amazônia, por nós
coordenado, juntamente com os Professores Doutores Roberto Mibielli (UFRR) e
Devair Fioroti (UERR). LITERATURA,
CULTURA E IDENTIDADE NA/DA AMAZÔNIA
[1] Docente do Departamento de
Ciência da Literatura da UFRJ. [lotação provisória]. Docente do Programa de
Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade da Universidade Federal do
Acre. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq- PQ. Este trabalho foi
produzido com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico - CNPq.
[2] Foi mantida a grafia original da obra.