Geraldo Generoso Ferreira
Mestre em Linguística Aplicada
pela UNITAU
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar as
representações de alfabetizadores sobre os conceitos que permeiam a questão do
letramento. Por meio de um questionário semiestruturado, os docentes
responderam questões que relacionavam definições sobre linguagem, alfabetização
e letramento. A análise linguístico-discursiva dos enunciados possibilitou-nos
perceber como os docentes lidam com tais temas e os definem. Acreditamos que
tais definições podem fornecer pistas de como são as práticas desses educadores
e, consequentemente, suas relações com o ensino e a aprendizagem de letramento
no contexto escolar. Como referencial teórico o trabalho ancora-se nos estudos
da Linguística Aplicada em interface com a Análise de Discurso de linha
francesa e estudos do campo da Educação.
Os resultados apontam para a necessidade de refletirmos sobre quais
conceitos permeiam a prática docente em termos de letramento, buscando assim,
desvelar as ideologias que perpassam o fazer pedagógico, tornando os
profissionais mais reflexivos sobre as ações socioideológicas que configuram o
seu trabalho.
Palavras-chave: Alfabetização; Letramento; Discurso.
Introdução
Trabalhando há mais de 12 anos como professor de línguas em uma escola
pública mineira, tenho percebido, a cada ano, o aumento do número de crianças
entre 11 e 13 anos que chegam ao 6º ano do ensino básico sem o domínio das
operações básicas de matemática e sem habilidades de leitura, escrita e
compreensão necessárias para esse nível de ensino.
Nas diversas reuniões que participo na escola, as opiniões são um
consenso entre os professores e especialistas da instituição: os alunos estão
chegando ao 6º ano sem saber ler, escrever e compreender as informações básicas
em textos elementares.
Desde 2009, participo de um projeto de educação continuada para
professores de línguas. Esse grupo tem como objetivo refletir sobre práticas
docência e compartilhar experiências de ensino e aprendizagem, de forma a
aprimorar o trabalho do professor.
Compartilhando com esse grupo, composto por professores de línguas de
diferentes municípios mineiros, sobre minhas angústias frente à situação acima,
ou seja, alunos que chegam a determinada série com tamanha defasagem e,
acreditando ser esse um problema exclusivo da escola em que trabalho, fiquei
surpreso com a resposta dos colegas professores: sua escola não é uma exceção à
realidade educacional brasileira. Várias outras estão na mesma situação: mais
de 40% dos alunos dessa faixa etária não atingiram um nível de proficiência em
leitura e escrita. Os dados foram obtidos no ano de 2011, por meio da prova ABC
(Avaliação Brasileira do
Final do Ciclo de Alfabetização) em
parceira com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep).
Diante da realidade exposta pelos dados acima, nos perguntamos, quais têm
sido as dificuldades no processo de ensino e aprendizagem de leitura e escrita
no ciclo de alfabetização?
Para respondermos tal questionamento faz-se necessário abordar uma
temática recorrente nos dias atuais – o Letramento. Não podemos falar em
alfabetização sem pensarmos na questão do letramento. Tal tema tem suscitado,
nas últimas décadas, diversas pesquisas e trabalhos sob diferentes enfoques
(STREET, 1995; BARTON,1994; KLEIMAN, 1995; SOARES, 2004; RIOS, 2009 )
Se
observarmos os trabalhos acima, muitos são os conceitos sobre o tema
necessitando, assim, de nos situarmos teoricamente ao tratamos do assunto.
Portanto, neste trabalho, coadunamos com a visão de Barton & Hamilton
(2000) que postulam o letramento a partir de práticas sociais situadas:
Nosso interesse está em práticas sociais em que o letramento desempenha um papel; em consequência, a unidade básica de uma teoria social do letramento é aquela de práticas de letramento. As práticas de letramento são as formas culturais gerais de utilização da língua escrita que as pessoas lançam mão em suas vidas. No sentido mais simples, as práticas de letramento são o que as pessoas fazem com o letramento. Contudo, as práticas não são unidades de comportamento observáveis porque elas também envolvem valores, atitudes, sentimentos e relações sociais. Isso inclui a consciência do letramento das pessoas, as construções do letramento e os discursos de letramento, como as pessoas falam sobre o letramento e o compreendem. Estes são processos internos ao indivíduo; ao mesmo tempo, as práticas são os processos sociais que conectam as pessoas umas com as outras, e elas incluem cognições compartilhadas, representadas em ideologias e identidades sociais (BARTON & HAMILTON, 2000, p.7-8).
Neste
contexto, falar de letramento escolar é situar tal processo dentro de um
contexto específico de ensino e aprendizagem que é o ambiente escolar, mas sem
ignorar os demais contextos dos quais os alunos fazem parte (família, Igreja,
grupo de amigos,).
Nossa hipótese é de que a forma como
os docentes entendem o que é letramento, define, em certa medida, o seu fazer
pedagógico em sala de aula. Daí a importância de analisar as suas
representações sobre o conceito de letramento e de temas correlacionados como
alfabetização e linguagem.
Assim, o presente trabalho tem como
objetivo analisar as representações docentes sobre conceitos como linguagem,
alfabetização e letramento, observando como os docentes formulam tais
definições e suas possíveis influências na prática docente.
Como referencial teórico, o trabalho
ancora-se nos estudos da Linguística Aplicada em interface com a Análise de
Discurso de linha francesa e estudos do campo da Educação.
Alfabetização um processo com conceitos
múltiplos
A aquisição da leitura e da escrita no ambiente escolar é um processo
multifacetado, uma vez que o mesmo envolve relações diversas entre os elementos
participantes do processo de ensino e aprendizagem (Por exemplo: aluno,
professor, contexto, instrumentos, etc.).
Neste sentido, falar de alfabetização e de seu conceito dependerá do
enfoque dado aos participantes envolvidos no processo. Na literatura, é comum
observarmos uma oscilação de enfoque entre esses participantes, o que, de certa
forma, resulta em posturas teórico-metodológicas também diferentes.
Em uma perspectiva que parte do enfoque na figura do professor, podemos
ter um conceito autorreflexivo de alfabetização, ou seja, o ato de ensinar a
ler e escrever mais relacionado à como o profissional integra o processo à sua
prática e, neste sentido, os demais elementos poderão ser relegados a um
segundo plano.
Da mesma forma, se a tendência for um enfoque no aluno, sem considerar
sua heterogeneidade sociocultural e sociocognitiva, tal processo poderá
acarretar na mera execução de tarefas, pelo aluno, demandadas pela prática
pedagógica e não pelas habilidades do aluno como um sujeito protagonista do
processo.
Finalmente, se o enfoque teórico-metodológico do processo de aquisição de
leitura e escrita estiver atrelado simplesmente aos instrumentos, como por
exemplo, o próprio código, a tendência poderá pressupor a decodificação com
resultado esperado, impossibilitando assim, gestos de significação que resultem
em interações sociais mais complexas.
Em concordância com esse pensamento, observam Pires, Ferreira e Lima
(2010, p. 4):
Há de se considerar que uma alfabetização descontextualizada não dá conta de acompanhar as transformações socioeconômicas de um país, uma vez que a sociedade favorece a ampliação e a circulação de várias fontes e tipos de textos. Portanto, cabe ao professor, ao fazer uso dos instrumentos e objetivos da educação, favorecer aos alunos a possibilidade de preparação para essa dinâmica social.
Neste sentido, no nosso entendimento, devemos pensar na alfabetização
como um processo que integre e resulte em uma dinamicidade desses elementos de
forma a abarcar as diferentes facetas configuradas em sua constituição.
Pensar no ambiente escolar como um lugar social problematizador das
formações discursivas, a nosso ver, é um primeiro passo para a construção de
uma visão integradora sobre o processo de alfabetização. Dessa forma, a
aquisição da linguagem escrita em ambiente escolar se estabelece pelo
reconhecimento desse lugar social enquanto espaço de (des)construção de
ideologias.
Giroux (1994) observa que pensar a alfabetização de forma radical é
atribuí-la um caráter sine qua non
para a emancipação dos sujeitos:
Em outras palavras, a alfabetização, como construto radical devia radicar-se em um espírito de crítica e num projeto de possibilidade que permitisse às pessoas participarem da compreensão e da transformação de sua sociedade, com o domínio de habilidades especificas e de formas particulares de conhecimento, a alfabetização devia torna-se uma precondição de emancipação social e cultural (Giroux, 1994, p. 2).
Na afirmação acima, percebemos que, na perspectiva do autor, o conceito
de alfabetização contempla a mobilização de diversos elementos presentes no
processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita, ao mesmo tempo, que
atribui a esse processo uma dimensão social contextualizadora do sujeito, do
“estar no mundo”.
Neste sentido a exclusão, a
falência ou o não sucesso do processo de alfabetização resulta, de certo modo,
na privação de direitos sociais básicos ao ser humano e a uma perpetuação de
ideologias dominantes.
Daí o caráter e o papel político do processo de alfabetização que não
apenas empodera os cidadãos, mas leva-os a uma postura emancipatória frente ao
mundo. A escola, como uma das agências de formação e de letramento, é também um
espaço social para reflexões ideológicas por meio das práticas docentes ali
adotadas.
A escola: uma arena ideológica
Observar lugar ocupado pela escola no processo de alfabetização é um dos
primeiros passos para mudanças significativas em termos de uma abordagem
crítica na alfabetização. Não se pode ter como finalidade uma alfabetização que
se limite ao sucesso apenas dentro do ambiente escolar ou para este fim. Como
pontua Giroux (1994), é necessária uma mudança de postura entre os teóricos de
forma que a pedagogia radical, de fato, se concretize, não sendo subteorizada e
que transponha o contexto do ambiente escolar.
Neste sentido, lembra-nos o autor:
Enquanto a alfabetização tem sido encarada como importante campo de luta para os conservadores e liberais, apenas marginalmente tem sido adotada pelos teóricos educacionais radicais nos casos em que tem sido incorporada como aspecto essencial de uma pedagogia radical, ela é gravemente subteorizada, e embora manifestando a melhor das intenções, suas aplicações pedagógicas são muitas vezes condescendentes e teoricamente enganadoras (GIROUX, 1994, p. 4).
Assim, a escola deve lutar por uma alfabetização para a vida social dos
seus alunos e não apenas para um sucesso em termos de aquisição de habilidades
especificas de leitura e escrita. Como dissemos anteriormente, sua função deve
gerar, principalmente, a busca pela compreensão das “condições ideológicas e
sociais que solapam a possibilidade de existirem formas de vida comunitária e
pública organizada em torno de uma democracia crítica” (GIROUX, 1994, p. 5).
A figura docente nesse contexto, a nosso ver, nos parece de grande
importância não apenas na mobilização dos conteúdos a serem apreendidos, mas
principalmente, pela forma problematizadora que o profissional pode aplicar ao
processo de alfabetização, integrando e interagindo as diversas dimensões
política, filosófica, social, cultural e ética que constituem esse fazer
pedagógico na visão girouxniana.
Consequentemente, tal postura e fazer requerem do profissional uma visão
mais apurada dos instrumentos pedagógicos em ação, no caso específico da
aquisição da leitura e escrita na escola, – a linguagem.
Linguagem, alfabetização crítica e formação
docente
A conceitualização de que a linguagem permeia as práticas sociais é um
ponto crucial para uma alfabetização crítica. Assim, o ensinar o que se ensina
e como se ensina ganham uma dimensão ideológica visível e passível de
transformação. Ao mesmo tempo em que instaura e legitima as relações de poder
nas interações sociais.
Segundo Freire (1994), a linguagem é o recheio da cultura, daí a sua
importância para a manutenção e/ou transformação das relações de poder, também
por ela naturalizada, fossilizando certas relações e conceitos no nível do
senso comum.
Neste sentido é preciso problematizar a linguagem como instrumento do
fazer pedagógico, situando-a no processo de alfabetização como instrumento
próprio de leitura das relações e das experiências sociais do sujeito no mundo.
Magalhães (2004), analisando o enfoque recebido pela linguagem nos contextos
de formação, pontua a dificuldade dos participantes em desconstruir
representações tradicionais devido ao conceito estruturalista atribuído à
linguagem:
[...] os modos como a linguagem vem sendo enfocada nos contextos de formação nem sempre possibilitam aos participantes a desconstrução de representações tradicionais que tem uma sólida base em uma pedagogia que entende ensino-aprendizagem como transmissão e devolução de conhecimentos e está apoiada em um conceito estruturalista de linguagem (MAGALHÃES, 2004, p. 61).
Compreender a visão docente sobre linguagem e sua influência no processo
de ensino e aprendizagem possibilita percebermos as relações e os conceitos
estabelecido dentro da sala de aula na alfabetização. Assim, o sucesso e/ou o
fracasso, em termos de alfabetização, perpassa a ideologia sobre linguagem
posta em ação nas trocas sociais estabelecidas no ambiente escolar. Daí a
necessidade de uma formação que abarque conhecimentos teóricos que facilitem o
processo.
Para Pires, Ferreira e Lima (2010, p. 11):
O ensino da alfabetização é um processo complexo que exige do professor uma boa formação teórica que o capacite para a compreensão de como se dá a construção do conhecimento pela criança e, também, o auxilie na aquisição e no desenvolvimento de habilidades que facilitem o êxito no processo de aprender e ser.
Desse modo, a complexidade da alfabetização perpassa o conceito de
linguagem e recai sobre o próprio processo de aquisição de habilidades
específicas de fala e escrita dentro de um contexto formal de ensino e
aprendizagem. A seguir, temos a contextualização da pesquisa.
Caracterização do contexto de pesquisa
A escola pesquisada fica em uma cidade da zona da mata mineira, com cerca
de 5 mil habitantes. A principal fonte de renda das famílias vem da agricultura
familiar e da produção cafeeira. A maioria dos estudantes são filhos de
pequenos agricultores e trabalhadores rurais. A escola é a única do município a
oferecer educação básica no nível fundamental.
O corpo docente é formado por 30 profissionais habilitados em diferentes
áreas (Letras, Pedagogia, História, Geografia, Matemática, Ciências, Artes). Um
fato curioso sobre a formação desses docentes é que todos possuem
especialização em
psicopedagogia. Tal fato deve-se a um convênio firmado entre
a prefeitura do município e uma universidade particular do Estado, com o
objetivo de oferecer aos docentes da rede uma formação em nível lato senso.
Outro ponto curioso em relação à escola pesquisada é que tais docentes
trabalham em um sistema de rodízio em relação às séries em que lecionam. Assim,
a cada ano o docente leciona em uma série diferente do ano anterior,
perpassando por todas as séries dos anos iniciais. Segundo a gestora da
instituição, a rotatividade faz parte de uma política interna com o objetivo de
“oferecer” ao docente uma visão panorâmica das séries iniciais, ao mesmo tempo
em que os permite refletir sobre a realidade dos diferentes níveis de ensino,
bem como sobre os estágios de desenvolvimento das crianças atendidas pela
escola.
Como nossa pesquisa refere-se à representação de professores
alfabetizadores sobre letramento, pensamos, a princípio, em entrevistar apenas
os profissionais que no ano da pesquisa estavam estão trabalhando com a
alfabetização. Contudo, ao conhecermos a realidade escolar e o sistema de
“rodízio”, achamos por bem entrevistar todos os 30 docentes uma vez que todos,
em algum momento, já ocuparam e/ou ocuparão tal função. Assim foi aplicado aos
professores um questionário semiestruturado, contendo questões abertas
relacionadas, de forma direta ou indireta, com o tema e a definição de
letramento.
Após a coleta dos dados, e como
forma de resguardar a identidade de cada entrevistado, os autores foram
designados por meio da nomenclatura P/Número, em que P significa Professor e
o número foi dado seguindo a ordem de entrega dos questionários respondidos. As
respostas foram transcritas sem alterações e/ou correções linguísticas. Temos
abaixo a reprodução do questionário de pesquisa:
Com suas palavras, explique o que
você entende por linguagem.
O que você entende por
alfabetização?
Qual o papel da linguagem no
processo de alfabetização?
O que você entende por
letramento?
Qual o papel de letramento em sua
prática?
Defina com suas palavras o que é
letramento digital?
Você se considera um professor
letrado em termos digitais?
Você utiliza algum recurso
digital no processo de ensino em sala de aula?
O corpus analisado é
constituído das respostas formuladas pelos docentes às questões acima
descritas. Partimos, portanto de uma abordagem discursiva que, segundo
Cavallari (2008), procura ancorar a análise dos registros na materialidade
linguística “desnudando” os aspectos históricos, sociais e ideológicos que
atuam na constituição dos sentidos que são “esquecidos” pelo sujeito
enunciador. Desse modo, nossa tarefa é pontuar a presença do interdiscurso e da
memória discursiva, observando como esses se configuram na construção dos
sentidos produzidos pelos conceitos de linguagem, alfabetização e letramento
emitidos pelos professores.
Análise dos dados
Os
dados abaixo analisados apontam para a heterogeneidade discursiva dos docentes
ao construírem um conceito para os termos linguagem, alfabetização e letramento,
apesar de ocuparem um mesmo lugar socialmente legitimado e instituído no
contexto escolar (professores alfabetizadores de uma escola municipal do estado
de Minas Gerais).
Observe o conceito de P1 sobre o que ele entende por
linguagem:
(P1) linguagem na minha opinião é a maneira como
falamos, ou seja, todos os meios de expressão por meio da fala e da escrita.
No dizer acima, percebe-se a forma generalizante
emitida por P1 e a relação direta entre linguagem e fala pontuada no enunciado
como a linguagem sendo o reflexo da fala. Ao mesmo tempo, P1 reporta os meios
de expressão e insere o termo escrita. Assim, para P1, linguagem é a forma como
falamos e escrevemos. Essa visão de linguagem pode acarretar distorções no
ensino e na aprendizagem, uma vez que a fala não corresponde diretamente a
escrita.
Neste mesmo sentido, P5 observa: linguagem é o conjunto de sinais da nossa língua escrita que
usamos para nos comunicar.
Tal definição restringe a linguagem ao campo da
escrita, desconsiderando assim, as nuances da fala e o uso de outros signos de
natureza não necessariamente verbal/lingüísticos. No recorte discursivo acima,
percebemos ainda que, para P5, a linguagem é definida como um conjunto de
sinais o que, de certa forma, endossa uma visão estrutural, já que se limita ao
campo da escrita. Da mesma forma, ao restringir aos sinais da escrita, desconsidera-se a fala do
processo de comunicação, rompendo a relação fala-língua-escrita e retomando a
divisão saussuriana. Essa conceituação de linguagem pode levar a uma prática de
alfabetização descontextualizada, ao considerar apenas a língua como estrutura
e desconsiderar a importância dos usuários como falantes autônomos munidos de
intenção e propósitos próprios.
Deferentemente dessa posição, P8, em seu dizer, pontua:
Linguagem
são todas as ações empenhadas na atribuição de sentido em uma determinada
língua.
No enunciado de P8, temos uma visão de linguagem mais
próxima da visão de letramento que coadunamos nesse trabalho. Ao considerar a
linguagem como “ações”, podemos observar o caráter dinâmico atribuído ao termo,
ou seja, algo que está numa mobilidade, reforçado pelo termo “empenhadas”.
Dessa forma, além de a linguagem estar no campo das ações, há um empenho ou
esforço na atribuição de sentidos. O ato de atribuir sentidos também é algo
interessante nessa definição de linguagem, pois pressupõe a ação de usuários da
língua que, num exercício semântico autônomo, dão sentido às construções
linguísticas.
No que se refere ao conceito de alfabetização, P3
define:
Alfabetização
é a prática de ensinar o aluno a ler e escrever corretamente para ele poder
saber se expressar na sociedade.
Tal
definição parte de uma visão tradicional dominante que estabelece as relações
de linguagem (ler e escrever) a partir do “certo ou errado”, desconsiderando os
estudos pontuados, principalmente, pela Sociolingüística, em termos de uso da
língua. Tem-se, no dizer acima, a reprodução da ideologia de que há uma forma
correta de fala e escrita e, por conseguinte, aqueles que não as utilizam, não
sabem se expressar na sociedade. Assim, para se expressar, segundo essa visão,
é preciso saber ler e escrever corretamente. Todavia, lembra-nos Calgliari
(2001, p. 82): “[...]“o certo” e “o errado”, são conceitos pouco honestos que a
sociedade usa para marcar os indivíduos e classes sociais pelo modo de falar
[...]. essa atitude da sociedade revela seus preconceitos, pois marca as
diferenças linguísticas com as marcas de prestígio e estigma”.
Para P8, a alfabetização é uma ação:
Em minha opinião, alfabetização é uma ação
para que o aluno compreenda o que é a língua portuguesa e como ela funciona. E
a oportunidade de não só crianças, mas também adultos conseguirem ler e
escreverem bem na sua língua.
Da mesma forma como na definição de linguagem, P8 vê
neste ato o seu caráter móvel, dinâmico e pontua a sua relação direta na
compreensão da língua portuguesa e seu funcionamento. Todavia, vê-se que P8, ao
delimitar a alfabetização no contexto da língua Portuguesa, desconsidera o
processo que ocorre nas diversas sociedades do mundo e não somente dos falantes
de língua portuguesa.
Entretanto, há no dizer de P8 uma observação que
remete ao discurso pedagógico vigente que é o da alfabetização como uma
oportunidade. Essa visão traz consigo uma carga ideológica sobre educação e não
só sobre alfabetização. Nessa visão o que, na verdade, é um direito, é visto
como oportunidade.
Portanto, mascaram-se e encobrem-se relações sociais,
políticas, econômicas e culturais na perspectiva de oportunidade, já que a sua
impossibilidade de concretização, ou negação, não teria um efeito de
responsabilidade. Opostamente, o direito se negado é passível, pelo menos, de
identificação de seus responsáveis, já que teoricamente o mesmo emana de um
sujeito ou de uma instância social.
Outro ponto a ser salientado nesse recorte é o uso do
verbo “conseguir”, no enunciado, atribuído a alfabetização capacidades do
aprendiz. Assim, a responsabilidade estaria na competência do aluno o que, mais
uma vez, exime os diversos fatores e participantes do processo (professores,
métodos de ensino, ferramentas de ensino, etc.), instituindo o sucesso da
alfabetização ao sujeito aprendiz.
Uma definição, a nosso ver, curiosa, foi dada por P9
que pontua;
E uma
ciência que possibilita ao homem utilizar a escrita e da língua no momento de
comunicação
A visão de alfabetização como ciência atribui ao termo
um status, até o momento, desconhecido, por nós, na literatura educacional.
Contudo, se pensarmos na proposta da pedagogia radical de Giroux (1986),
poderíamos dizer que, em certa medida, tal prática ganharia esse patamar, uma
vez que a mesma proporcionaria, até certo ponto, uma análise de nossa sociedade
em termos de práticas sociais nela estabelecidas e interpretadas. Todavia, para
que tal fato venha se concretizar, seria preciso uma mudança radical dos
teóricos e das academias em busca de um esforço mútuo para a consolidação da
alfabetização como ciência. Por hora, o que tal definição aponta é para um
possível equívoco conceitual do que seja ciência para o docente entrevistado.
P16
alfabetização é o ensino da língua padrão para que o aluno consiga compreender
o mundo a sua volta e vá bem na solução de problemas no dia a dia lendo e
escrevendo corretamente.
Na definição de P16, observa-se, a princípio, uma
coerência teórica com os estudos atuais sobre alfabetização já que, no seu
dizer, ele pontua a marcação da variedade padrão e a perspectiva de leitura
como compreensão do mundo com vistas a solução de problemas do cotidiano, o que
revela uma concepção de leitura além do que é meramente decodificado.
Entretanto, percebemos ainda a influência da memória
discursiva da ideologia normativa que estabelece a linguagem a partir dos
conceitos de certo e errado. Tal apontamento revela, no enunciado, a tentativa
de P16 em manter-se na perspectiva teórica vigente, mas, ao mesmo tempo,
mostra-se “preso” ao discurso tradicional em termos de uso da linguagem.
Assim, a alfabetização encontra-se, de certa maneira,
representada de forma conflituosa, no dizer acima, o que pode gerar uma distorção
entre teoria e prática em sala de aula, principalmente em termos avaliativos,
nos quais a ideologia normativa (certo/errado) ainda prevalece.
P20 define alfabetização a partir de sua experiência
na educação de Jovens e Adultos, EJA:
Para mim,
que tenho experiência no EJA, alfabetização é como o professor trabalha para
formar cidadãos para a vida. È ensinar a ler e escrever de tudo um pouco. Não
se deve formar analfabetos funcionais. Por isso a importância de saber ensinar
a ler e escrever de forma crítica.
No
excerto acima, P20 mostra-se, ligado ao discurso da alfabetização crítica, ao
enunciar que a alfabetização visa formar cidadãos para a vida e explicando tal
ponto de vista, completa: é ensinar a ler e escrever de “tudo um pouco”. Esse
“tudo um pouco” parece-nos estar associado aos diversos gêneros discursivos
postos nas práticas sociais que circulam na nossa sociedade. Há ainda nesse
dizer a presença da voz instrucional que adverte: “não se deve formar
analfabetos funcionais” tal fala remete a uma memória discursiva dos espaços de
formação docente que buscam combater ao analfabetismo funcional, instruindo e
orientando, em termos teóricos, a concepção de alfabetização crítica.
Diferentemente das demais posições apresentadas neste
trabalho em relação à alfabetização, essa definição foi a única que não
associou as ações de ler e escrever com as asserções normativas de certo e
errado. Assim, tal postura pode indicar que a prática docente, neste caso, não
se desenvolve pela ideologia normativa. Essa observação pode ser endossada pela
definição do mesmo profissional sobre Letramento:
P20 Letramento é o conjunto de
ações que fazem com que o aluno saiba ler e escrever de forma crítica.
Letramento é mais que alfabetizar, já que se prende as ações sociais. É fazer
com que o aluno seja um cidadão crítico.
Com a definição de letramento, observa-se que P20
insere o conceito em um conjunto de ações sociais, o que de certo modo, reporta
a definição de Barton & Hamilton (2000) os quais observam o letramento a
partir de práticas sociais, na busca por uma formação que vá além da aquisição
da linguagem escrita e da leitura. De modo ampliado e dando uma singularidade
ao processo, P20 pontua “letramento é mais que alfabetizar” essa asserção é uma
tentativa de demarcação e de diferenciação do que seja alfabetização e
letramento. Ao enunciar que letramento é fazer com que o aluno seja um cidadão
crítico, P20 indica que a alfabetização não necessariamente exerce tal função,
Já o letramento é reconhecido e definido a partir dessa condição.
P9, por sua vez, salienta:
Letramento tem vários
significados, mas para mim, é alfabetizar o aluno com responsabilidade, é fazer
a alfabetização dar certo.
No dizer acima, o profissional mostra-se cônscio de
que o letramento pode assumir concepções diferentes, contudo, o mesmo observa
que, em sua opinião, é alfabetizar com responsabilidade. Nesse sentido, P9
atrela ao letramento à prática de alfabetização e ao senso de responsabilização
desse fazer pedagógico. Assim, o letramento está ligado diretamente, na visão
de P9, a postura do professor com o seu trabalho e ao seu comprometimento. Tal
ponto de vista é endossado pelo enunciado final que acrescenta: “é fazer a
alfabetização dar certo”. Dessa forma, o letramento estaria ligado ao resultado
positivo da alfabetização, tendo como principal responsável o docente.
O perigo dessa concepção está no fato de atribuir a
responsabilidade de um processo complexo, como vimos anteriormente, à apenas um
dos elementos do processo. Tal visão filia-se ao discurso tradicional em termos
educacionais que considera o professor responsável pela aprendizagem em sala de
aula.
Entretanto, como pontua Ferreira (2011), na
atualidade, a figura do professor encontra-se num entre-lugar social, ou seja,
ora lhe é cobrado atitudes e valores e responsabilidades, ora lhe é negado ou
ocultado certos “poderes” principalmente em termos de seu fazer pedagógico.
Assim, torna-se necessário compreender a rede de relações socioiedológicas que
constituem o fazer docente e como tais relações definem o trabalho do professor
em sala de aula. Tal aspecto possibilita um maior entendimento em termos de
responsabilização do trabalho docente
Na visão de P16, letramento está ligado a uma
competência de leitura e escrita de gêneros textuais: Letramento é quando o aluno sai da escola sabendo ler e escrever
corretamente todos os tipos de texto: Jornais, revistas, receitas, bulas,
manuais, etc.
Apesar dos gêneros textuais fazerem parte das práticas
de interação de um povo eles são apenas parte de uma gama variável de práticas
sociais situadas. Considerar o letramento restrito aos gêneros é limitar as
relações ideológicas que também se estabelecem por meio da oralidade e não
somente da escrita. Novamente, assim, como na definição de alfabetização, P16
atribui ao letramento traços do discurso normativo ao referir-se a capacidade
de o aluno sair da escola sabendo ler e escrever “corretamente”. A repetição do
termo “corretamente” nas definições do entrevistado indica como o mesmo
encontra-se ainda filiado a uma formação discursiva em que a ideologia
normativa do “certo e errado” em linguagem é algo recorrente.
Para P27, letramento e alfabetização são sinônimos
quase idênticos:
Para mim,
letramento é o mesmo processo da alfabetização só que mais consciente, ou seja,
o aluno aprende a ler e escrever consciente da importância da leitura e da
escrita na sociedade e de seu papel como cidadão.
Essa definição de letramento deixa transparecer a
visão de alfabetização como um processo inconsciente ou em que, de forma
alienada, o aluno aprende a ler e escrever. Parece-nos que, para P27, “estar
consciente” garante que a cidadania do sujeito em sociedade. Porém ,
se pensarmos, a partir dessa perspectiva, poderemos afirmar que o analfabeto
funcional, em muitos casos, tem “consciência” da importância da escrita e da
leitura. Todavia, não é apenas a consciência de algo que nos dá o controle
sobre o mesmo. É necessário que se reconheçam as ideologias que perpassam os
modos de agir em sociedade e, a partir dessas, se façam escolhas convenientes
aos sujeitos que delas se servem no convívio social.
A relação de letramento e outras linguagens é
observada na definição de P19:
Letramento é o domínio contextualizado das diversas
linguagens, nos diferentes ambientes sociais dos quais os alunos participam.
No recorte acima, é interessante a definição de
letramento como o “domínio contextualizado”, ou seja, não se trata apenas de
“saber” mas do uso apropriado de acordo com o contexto. Essa definição
pressupõe, no nosso entendimento, o caráter
situacional que envolve as “diversas linguagens”. É interessante,
observar que diferentemente das demais definições dadas pelos docentes, P19
utiliza o termo “linguagens” indicando a possibilidade de outras formas além da
leitura e da escrita, recorrentes nos dizeres anteriores. O enunciado ainda
observa os diferentes ambientes sociais, o que revela a mobilidade social das
“linguagens” em uma determinada sociedade, ou ainda, como postula Kleiman
(2004), das diferentes agências de letramento.
A importância desse conceito está no fato de o docente
atribuir as “linguagens” a dimensão social do uso em contexto. Essa
percepção pode gerar no ensino e na aprendizagem um caráter pragmático próprio
das interações sociais, contribuindo e elucidando o caráter social e
ideológico. A autora, observando o estabelecimento de agências de letramento
numa sociedade, salienta:
O fenômeno do letramento, então, extrapola o mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas instituições que se encarregam de introduzir formalmente os sujeitos no mundo da escrita. Pode-se afirmar que a escola, a mais importante das agências de letramento, preocupa-se, não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de prática de letramento, a alfabetização, o processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico), processo geralmente concebido em termos de uma competência individual necessária para o sucesso e promoção na escola. Já outras agências de letramento, como a família, a igreja, a rua como lugar de trabalho, mostram orientações de letramento muito diferentes (KLEIMAN, 2004, p. 20).
Tal afirmação reforça o dizer de P19 em termos de
abrangência do processo de letramento, elucidando sobre a existência de outros
contextos, formais ou não, que exercem um papel fundamental na articulação
entre os demais espaços de letramento.
Considerações finais
O presente trabalho teve como objetivo analisar as
representações de alfabetizadores sobre os conceitos que permeiam a questão do
letramento. Por meio de um questionário semiestruturado, os docentes
responderam questões que relacionavam temáticas como linguagem, alfabetização e
letramento.
Por meio da
análise dos enunciados, podemos perceber como os docentes lidam com tais temas
e os definem. Acreditamos que tais definições podem fornecer pistas de como são
as práticas desses educadores e, consequentemente, suas relações com o ensino e
a aprendizagem de letramento no contexto escolar.
O estudo apontou para uma heterogeneidade discursiva
em relação aos conceitos formulados pelos docentes sobre os temas e o
letramento, ora tendendo a uma perspectiva normativa ora tendendo a uma postura
mais crítica.
O trabalho apontou, ainda, que, embora o docente
queira muitas vezes demonstrar uma postura ideológica diferente da dominante,
seu discurso está ainda filiado a essa concepção.
Esses resultados apontam para a necessidade de
refletirmos sobre quais conceitos permeiam a prática docente em termos de
letramento, buscando assim, desvelar as ideologias que perpassam o fazer
pedagógico tornando os profissionais mais reflexivos sobre as ações
socioideológicas que configuram o seu trabalho.
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