Luciana
Nascimento[1]
Sandra
Teresa Basílio Cadiolli[2]
Resumo: Neste
trabalho, pretendemos fazer uma leitura da letra da música Apesar de você, de Chico Buarque, buscando entrelaçar os discursos
histórico e artístico, mostrando a capacidade inventiva deste último, ao mesmo
tempo em que lança uma palavra de luta num tempo de silenciamento da palavra
crítica, como foi o tempo da ditadura militar no Brasil.
No momento em que se completaram 48 anos do início da Ditadura militar (a
qual se prolongou por duas décadas), reler a canção “Apesar de Você”, de Chico
Buarque, é, sem dúvida, uma oportunidade para repensarmos as estratégias da
produção cultural em tempos de silenciamento da palavra crítica. De acordo com
Alfredo Bosi, os marcos históricos guardam relevância particular para a
captação dos diferentes discursos sobre a sociedade:
Datas são pontos de luz sem os quais a densidade
acumulada dos eventos pelos séculos dos séculos causaria um tal negrume que
seria impossível sequer vislumbrar no opaco dos tempos os vultos dos
personagens e as órbitas desenhadas pelas suas ações. A memória carece de nomes
e de números. A memória carece de numes. (BOSI, 1992, p. 19)
A canção “Apesar de Você data de 1971, período de maior repressão
política e cultural do país. Chico Buarque utiliza técnicas argumentativas que
tinham como objetivo despistar os censores e colocar o público a par da
situação na qual vivia o nosso país. O autor constrói seu protesto, inclusive,
utilizando mecanismos argumentativos implícitos que se tornam explícitos no
momento em que o auditório toma consciência do conteúdo político. De acordo com
Maria Aparecida Baccega, o intercâmbio entre emissor e receptor produz os
sentidos da mensagem:
Basicamente, porém,
podemos dizer que toda palavra dirige-se a um interlocutor, presente ou ausente
(o outro): ou seja, há sempre um “auditório” estabelecido. Ela carregará,
portanto, três dimensões:procede de alguém (há alguém que fala), dirige-se para
alguém (o outro) e procura persuadir, convencer (em maior ou menor grau). (BACCEGA,
1995.p.32)
Chico Buarque , então, reverte a situação, pois o seu destinatário na
verdade era a ditadura militar e é por meio do uso de “palavras simples” que o
autor envia sua mensagem, tornando o “povo brasileiro”, o sue leitor e, não os que
censurariam a música, ou seja, os militares. Vale ressaltar que a estratégia de
Chico foi eficaz, pois o disco foi lançado, vendeu muitas cópias e só mais
tarde a ditadura percebeu que era ela o auditório de Chico.
Vale ressaltar que no período de produção da canção, vivíamos o tempo do
Governo de general Emilio Garrastazu Médici, o qual assumira concomitante à
promulgação dos “ atos instituicionais”, os quais passaram a delinear um
governo repressor, tendo sido o mais famoso o “AI-5”, de 1968. Sob o esilo
forte e extremante centralizador, no Governo Médici foi introduzida nova lei de
segurança nacional, incluindo em um de seus itens a pena de morte por
fuzilamento. Conforme enfatizou José Murilo de Carvalho:
No início de
1970, foi introduzida a censura prévia
em jornais, livros e outros meios de comunicação. Isto significava que
qualquer publicação ou programa de rádio ou televisão tinha que ser submetido
aos censores do governo antes de serem levados ao público. Jornais, rádios e
televisão foram obrigados a conviver com a presença do censor. Com freqüência,
o governo mandava instruções sobre os assuntos, que não podiam ser mencionados.
(CARVALHO, 2002. p. 139)
O uso da censura era justificado pelo regime militar como forma de preservar a moralidade e os bons
costumes. Na verdade, o que não se
permitia era manifestação alguma contra o governo ou suas medidas. Com o
surgimento do regime, grupos de esquerda agiram na clandestinidade e adotaram
táticas de guerrilha urbana e rural no combate à ditadura bem como o uso de
estratégias de linguagem metafórica, a fim de fazer a crítica ao governo sem
manifestação direta, como é o caso da canção “Apesar de Você.”.
“ Apesar de você” apresenta como ideia principal a vontade do sujeito
poético em expor sua indignação frente a uma pessoa. Podemos olhar esse
referente como uma metáfora do governo ditatorial representado pelo então
presidente Médici. O Presidente, no texto, seria, pois esse alguém que não
permite o desenrolar dos acontecimentos de forma natural, como podemos observar
nos versos:
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não.
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão.
Viu?
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar
Toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar o perdão.
Falou, tá falado
Não tem discussão, não.
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão.
Viu?
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar
Toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar o perdão.
(Coro) Apesar de você
amanhã há de ser outro dia.
Eu pergunto a você onde vai se esconder
Da enorme euforia?
Como vai proibir
Quando o galo insistir em cantar?
Água nova brotando
E a gente se amando sem parar.
amanhã há de ser outro dia.
Eu pergunto a você onde vai se esconder
Da enorme euforia?
Como vai proibir
Quando o galo insistir em cantar?
Água nova brotando
E a gente se amando sem parar.
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros. Juro!
Todo esse amor reprimido,
Esse grito contido,
Esse samba no escuro.
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros. Juro!
Todo esse amor reprimido,
Esse grito contido,
Esse samba no escuro.
Você que inventou a
tristeza
Ora tenha a fineza
de “desinventar”.
Você vai pagar, e é dobrado,
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar.
Ora tenha a fineza
de “desinventar”.
Você vai pagar, e é dobrado,
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar.
(Coro2) Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Ainda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria.
Amanhã há de ser outro dia.
Ainda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria.
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença.
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença.
E eu vou morrer de rir
E esse dia há de vir
antes do que você pensa.
Apesar de você
E esse dia há de vir
antes do que você pensa.
Apesar de você
(Coro3)Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia.
Amanhã há de ser outro dia.
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia.
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear, de repente,
Impunemente?
Como vai abafar
Nosso coro a cantar,
Na sua frente.
Apesar de você
Vendo o céu clarear, de repente,
Impunemente?
Como vai abafar
Nosso coro a cantar,
Na sua frente.
Apesar de você
(Coro4)Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Você vai se dar mal, etc e tal,
La, laiá, la laiá, la laiá…….
Amanhã há de ser outro dia.
Você vai se dar mal, etc e tal,
La, laiá, la laiá, la laiá…….
(Fonte: http://chiconaditadura.blogspot.com.br/2009/09/apesar-de-voce.html)
A denúncia por meio de versos metafóricos é recorrente na música de Chico
Buarque, o que pode ser observado em versos como: “Apesar de você, amanhã há de
ser outro dia”, ou seja, apesar de tudo o que ocorria na ditadura, como as
torturas e as mortes a quem se opusesse à ela, o dia da democracia chegaria, o
que é enunciado pelo sujeito poético: “Ainda pago para ver o jardim florescer,
qual vc não queria”; “Você vai ter que ver o jardim florescer e esbanjar poesia”.
Há uma importante associação entre a
democracia e a poesia, justamente pelo caráter de liberdade das palavras,
característica da escrita poética.
No primeiro trecho da letra “Hoje
você é quem manda, falou, tá falado não tem discussão”. Em termos
microestruturais, nota-se a presença do argumento quase lógico na frase “falou
tá falado”, para indicar que o que era dito pelos militares era lei e não havia
a possibilidade de contestação por parte do povo. Tal silenciamento é revertido
ao final da canção, quando o sujeito poético proclama, sob uma fina ironia, o
fim dos silêncio: “ quando chegar o
momento, esse meu sofrimento, vou cobrar com juros, eu juro, todo esse
amor reprimido, esse grito contido”, nos aponta para o recurso da ironia que
poderá inverter a situação.
Segundo Milton Francisco da Silva, nas canções engajadas do tipo
nacionalista datadas dos anos 60 e 70, o referente governo é sempre “empregado
de modo genérico, entendendo-o como o grupo constituído pelos políticos que
lideraram a ditadura militar.” (SILVA, 2004. p. 135). Na canção “Apesar de você”,
segundo o autor, a interpretação referencial é a forma pronominal sem referente
explícito - você.
Na segunda estrofe da canção, aparecem os versos que soam como uma
lamúria: "A minha
gente hoje anda / Falando de lado / E olhando pro chão, viu". Ou seja, a opressão é coletiva,
fixando marcas e domesticando o corpo, pois as pessoas andam olhando para o
chão.
Os versos a seguir evocam novas
informações acerca da situação vivida, pois a reiteração “inventou de
inventar” mostra ao leitor que há um
sujeito que denuncia ininterruptamente: "Você que inventou esse estado / E
inventou de inventar / Toda a escuridão" /
"Você que inventou o pecado /
Esqueceu-se de inventar / O perdão".
O título ecoa no refrão: "Apesar
de você / Amanhã há de ser / Outro dia". Isso nos diz que há
esperança. Sublinhemos que o tempo é abstrato, pois, o amanhã tem o sentido de
futuramente; "outro dia", de uma situação inteiramente distinta
daquela que se está vivendo, cujo tom é profético: "Eu pergunto a você / Onde vai se esconder /
Da enorme euforia". Denuncia a censura: "Como vai proibir / Quando o galo insistir / Em cantar".
E anuncia a boa nova: "Água nova
brotando / E a gente se amando / Sem parar".
Daí em diante, os versos vão se tornando mais e mais catárticos. Ameaçam:
"Quando chegar o momento / Esse
meu sofrimento / Vou cobrar com juros, juro". Prometem revanche: "Você vai pagar e é dobrado / Cada
lágrima rolada / Nesse meu penar". E conclui-se "Você vai se dar mal ".
"Apesar de você" é de 1970. Vivíamos sob a ação repressora, os
direitos humanos eram violados; e as garantias constitucionais, canceladas. Os
cárceres estavam repletos de presos políticos. Escritores, artistas e
jornalistas sofriam os rigores da censura. O próprio Chico Buarque amargou o
exílio, como Caetano, Gil e tantos outros.
Nesse contexto,
a canção foi censurada. Mas circulava em fitas cassetes, clandestinamente. Até
que, liberada com a abertura política de Geisel, estourou nas paradas de
sucesso.
Indagado sobre o que achava das músicas de Chico Buarque, o general-presidente
respondeu que não gostava delas. Até aí, sem novidades. O curioso foi que a sua
filha, entrevistada pelos mesmos jornalistas, disse que gostava sim. Chico,
então, comemorou com um rock que ironizava: "Você não gosta de mim / Mas a sua filha gosta".
Em "Apesar de você", Chico provocara: "Inda pago pra ver /
O jardim florescer / Qual você não queria". E, finalmente, realizava-se a
vingança premeditada: "Você vai se amargar / Vendo o dia raiar / Sem lhe
pedir licença / E eu vou morrer de rir / Que esse dia há de vir / Antes do que
você pensa".
"Apesar de você" é catártica, ou seja, é uma letra que convoca,
mobiliza e tem a propriedade de trazer à tona "Todo esse amor reprimido /
Esse grito contido / Esse samba no escuro", ao mesmo tempo em que canta o
futuro político do país, ou seja, a redemocratização, per
Sem dúvida, o futuro cantado por
Chico Buarque, hoje constitui nosso recente passado a partir da redemocratização do país, a qual
teve início no ano de 1974 com o governo Geisel. O presidente e seus aliados
pertenciam ao grupo de Castelo Branco, conforme enfatiza Murilo de Carvalho:
Esse grupo nunca entendeu prolongar indefinidamente o controle militar
do governo. Eram liberais conservadores, ligados à Escola Superior de Guerra.
Desagradava-lhes o populismo vanguardista, mas não eram partidários de uma
ditadura. Sua convicção política era liberal, embora não democrática.
(CARVALHO, 2002. p.160).
Se esta postura foi uma iniciativa para desmontar o
regime autoritário, outros fatores também levariam ao processo de
redemocratização. Podemos destacar que desde 1973, houve um aumento exorbitante
do preço do petróleo promovido pela OPEP (Organização dos Países Produtores de
Petróleo) e o Brasil que dependia 80% da importação daquele produto foi atingido
duramente. Criou-se um grande desequilíbrio na balança orçamentária, tendo
ocorrido o freio ao desenvolvimento e o aumento do desemprego.
O ponto alto da redemocratização se deu no ano de 1979, com a lei da
anistia aprovada no congresso, a abolição
do bipartidarismo e a fundação do Partido dos Trabalhadores, na esteira das
grandes greves do ABC, o que viria a modificar os rumos e a feição da política
no Brasil, além das grandes campanhas pelas eleições diretas, em cujos
comícios,
compareciam os líderes dos partidos da oposição, os
presidentes de associações in fluentes como a ABI e OAB, e sobretudo, os mais
populares jogadores de futebol, cantores e artistas de televisão. Músicas
populares de protesto eram cantadas com acompanhamento da multidão, tudo sempre
em perfeita ordem. As cores nacionais, o verde e o amarelo, tingiram roupas,
faixas, bandeiras. A bandeira nacional foi recuperada como símbolo cívico.
(CARVALHO, 2002. p.150).
Se estava terminado o ciclo dos governos militares no
Brasil, nova frustração se abateria ao povo brasileiro. Doente gravemente
Tancredo falece antes de assumir seu mandato. Enquanto ainda agonizava seu vice
José Sarney (fruto da negociação de Tancredo com o ex-presidente Geisel e o
vice- Aureliano Chavez), democrata de última hora pois era da Arena, o partido
de apoio ao regime militar e posteriormente o PDS, foi até o planalto receber a
faixa presidencial de Figueiredo. No entanto, não encontrou mais ninguém. O
último ditador havia saído pelos fundos, despedindo-se com esta mensagem para o
povo: “Que me esqueçam”. Assumindo definitivamente a presidência da República o
ex-presidente da Arena torna-se, então, o presidente de um Brasil
redemocratizado, com o novo dia chegando, com a manhã renascendo e o jardim
florescendo, como bem cantou Chico Buarque.
Referências
BACCEGA, Maria
Aparecida. Palavra e discurso:
História e literatura. São Paulo: Ática, 1995.
BOSI, Alfredo. O
tempo e os tempos. In: NOVAES, Adauto. (org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria
Municipal da Cultura, 1992.
CARVALHO, José
Murilo de. Cidadania no Brasil. O
longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
SILVA, Milton
Francisco da. Estratégias de
introdução do referente "governo" na Canção Engajada Nacionalista. Letras & Letras, v. 20, n.1, p.
131-141, 2004.
Site consultado
[1] Doutora
em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Pós-Doutora em Ciência da
literatura pela UFRJ. Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem
e Identidade da Universidade Federal do Acre-UFAC. Professora Adjunto IV da
UFAC. Centro de Educação, Letras e Artes.
[2] Doutora
em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora Adjunto III da
Universidade Federal do Acre. Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFAC.