JACQUES
DERRIDA: O DAS TERRAS DE FORA
Helano Ribeiro
(Doutorando UFSC)
Resumo: Este artigo procura armar uma conversa de
uma conversa, um convite para discutir através do filósofo Jacques Derrida a
hospitalidade, tomada aqui, como uma ética. A questão do estrangeiro levada à
discussão sobre a hospitalidade absoluta, proposta por Derrida como aquela em
que um se abre incondicionalmente ao outro, ao estranho, ao sem-nome, estranho
(fremd) como potência de
des-controle, in-operância da lei.
Palavras-chave:
Jacques Derrida; hospitalidade; estrangeiro.
Abstract: This article attempts to arm a conversation of a conversation, an
invitation to discuss through the philosopher Jacques Derrida the hospitality,
taken here as an ethic. The issue of foreign brought to the discussion of
absolute hospitality, proposed by Derrida as one in which one is
unconditionally open to the other, to the stranger, to the nameless (fremd) as un-control, un-operating of law.
Keywords: Jacques Derrida; hospitality;
foreign.
Em sua Gramatologia
(1967) o pensador argelino Jacques Derrida inicia o jogo desconstrucionista de
toda a herança de verdades do discurso metafísico ocidental, revelando todo o
legado da filosofia do ocidente em torno de sua dependência quase incorrigível
da metafísica da presença. Seu pensamento revela-se, em sua essência, na
desconstrução das grandes narrativas como a psicanálise, antropologia e a
lingüística.
Na Gramatologia, Derrida aponta para o binômio do signo lingüístico, mostrando
todo o legado patriarcal, metafísico e maniqueísta da cultura ocidental que
perpassam o Curso de Lingüística Geral,
do suíço Ferdinand de Saussure. Ao definir a escritura como exterior, o fora da
lingüista estruturalista, Saussure estaria privilegiando as oposições
fonocêntricas do tipo significante-significado, interno-externo,
realidade-imagem, presença-ausência, que já não conseguem explicar o conceito
de episteme. Derrida propõe o seu conceito de différance para des-montar e inserir nas oposições binárias do
sistema logocêntrico o indecidível. A différance é um ponto não fixo que pode estar em
qualquer lugar da escala imposta pelas oposições binárias
hierarquizadas, poder-se-ia ser lido junto do conceito de rizoma de Gilles
Deleuze e Félix Guatarri. [1] A différance é, na verdade, um arquiconceito, pois nele estão
contidos outros conceitos que
compõem a noção de desconstrução como o deslocamento do
centro. Derrida fica com a escritura. O que interessa, então, ao autor de Força de lei é esse “de fora” que vem
incomodar a estrutura do jogo pré-estabelecido e limitado pela lingüística
estruturalista.
Pensar esse “de fora” leva-me
ao seminário de Derrida, Anne
Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade, em que, num
formato de conferência, são discutidos temas em torno do estrangeiro, ou
daquele que vem de fora, e da hospitalidade.
Em língua alemã, a
palavra estrangeiro, Ausländer, é
composta pela partícula “aus” que significa “de fora”, ou um movimento de “um
fora ao dentro”, e de “Länder”, que significa “terras”, “países”. Este
“estranho” (em alemão se traduz por Fremd,
ou estranho, diferente), que vem de fora a essas novas terras e provoca
naqueles que o recebem sentimentos ora de alegria, ora de apreensão e dúvida. O estrangeiro procura na terra e língua
estranhas a hospitalidade de seus hospedeiros.
A hospitalidade,
segundo Derrida é vista como uma reciprocidade de responsabilidade entre o eu
e o outro, enfocando o crescimento das relações provenientes desse
encontro e do contato estabelecido entre aquele que a princípio nos parece
diferente, estranho por características físicas, culturais, lingüísticas ou até
mesmo por ser desconhecido. Circular nesta inscrição do idioma da hospitalidade
total, aquela a revelar-se na entrega, é doar-se ao o outro em sua estranheza (Fremdartigkeit), ou seja, livre de qualquer
apreensão pré-concebida. De um ponto de vista, o desconhecido se torna
conhecido por sua identidade, pelo nome que carrega do pai. Citando Derrida
(2003, p.11) sobre o estrangeiro: “ele sabe antecipadamente ser posto em
questão pela autoridade paterna e razoável do logos, a instância paterna do logos
se prepara a desarmá-lo, a tratá-lo como louco”. O que interessa, então, a
Derrida não é aquele hóspede, estranho, que carrega claramente seu nome, a
marca paterna, mas aquele que impõe o que Derrida chamará de hospitalidade
absoluta, ou seja, aquele para quem o hospedeiro abrirá a sua casa, sem exigir
nada em troca, nem mesmo seu nome, num ato de entrega e confiança absolutas.
Segundo Derrida, a
hospitalidade não deve ser vista somente como uma aceitação da diferença, mas
como um aprendizado que esse contato oferece. O contato com o outro, faz com
que o eu exista, o que nos faz entender que o outro é responsável pela
sua representatividade, pois pela interação, pode reformular ou não o eu.
O outro representa o que o eu ainda não é, o que eu posso vir através de
um devir-louco que se perde nesse outro. O ato da hospitalidade aproxima o eu
desinteressado e leva ao outro, através de seu desejo de ser-com, abrindo espaço para o jogo
nesse campo imanente de sensações alheias.
Em outro seminário,
Derrida dedica-se de forma breve ao tema da hospitalidade, Dire l’événement, est-ce possible?, seminário apresentado em
Montreal no ano de 1997 com a presença de Gad Soussana e Alex Noussa. Nele, o
filósofo expõe que a hospitalidade não consiste somente em receber aquele por
quem ansiamos ou nos compraz, mas essencialmente, pelo hóspede inesperado, ou
indesejado, aquele que desafia nossa própria subjetividade:
L’hospitalité ne consiste pas simplement à recevoir ce
qu’on est capable de recevoir. Lévinas dit quelque part que le sujet est un
hôte qui doit accueillir l’infini au-delà de sa capacité d’accueil. Accueillir
au-delà de sa capacité d’accueil: cela veut dire que je dois recevoir ou que je
reçois là ou je ne peux pas recevoir, là ou la venue de l’autre m’excède,
paraît plus grande que ma maison. (DERRIDA, 2011, p.97)
Em seu seminário com
Anne Dufourmantelle, Derrida discute a interferência do Estado em relação à
intervenção de controle e apagamento de arquivo virtual, acerca de um
determinado material pornográfico existente na internet na Alemanha, mostrando a
tênue linha entre o público e o privado, bem como a interferência estatal na
esfera do chez-soi: “Essa máquina interdita a hospitalidade, o direito à
hospitalidade, que ela própria deveria tornar possível”. (2003, p.59) O Estado,
diz ele, cada vez mais diminuído diante do potente arquivo virtual, procura com
todos seus esforços controlar e invadir um espaço, que legalmente não lhe diz
respeito.
Jean-Luc Nancy repensa
a comunidade em termos distintos daqueles que, na sua origem cristã, religiosa,
tinha-a qualificado, repensá-la em termos do comum e a dificuldade de
compreendê-lo em seu caráter não dado, não disponível e, nesse sentido, o menos
comum do mundo. Mesmo a comunidade inoperante, como chama Nancy a partir de
seus estudos de Bataille, com sua recusa dos Estados-nação, partidos,
assembléias, povos companhias ou fraternidades, deixava intocado esse domínio
do comum e o desejo (e a angústia) do ser-comum que os fundamentalismos
instrumentalizam crescentemente. Já o sem-nome, sem-identificação, poderia
configurar como integrante dessa comunidade inoperante, em sua necessidade de
ser-com, e, ao, mesmo tempo, ter sua singularidade assegurada, em um movimento
que não se fecha em si. Toco através de um gesto no pensamento de Giorgio
Agamben em seu livro A comunidade que vem quando ele diz que
essa comunidade por vir é aquela que o Estado não pode tolerar. Uma
singularidade qualquer que o recuse sem constituir uma cópia espelhada do
próprio Estado em uma imagem que possa ser reconhecida nesse sistema:
De onde provêm as singularidades quaisquer, qual é o
seu reino? As discussões de S. Tomás sobre o limbo contêm os elementos para uma
resposta. Segundo o teólogo, a pena a que estão sujeitas as crianças não
baptizadas, que morreram sem outra culpa que a do pecado original, não pode na
verdade ser uma pena aflitiva, como é a do inferno, mas unicamente uma pena
privativa, que consiste na perpétua ausência da visão de Deus. (AGAMBEN, 1993,
p. 13)
O não-batizado, ou aquele
que ainda não teve seu nome legitimado. Ele não pode responder por si diante da
lei: o sem-nome. Ele é considerado como um fora da lei, mas que dentro do novo
território circula e ameaça a funcionalidade do nomos, que por sua vez não o consegue apreendê-lo, ele escorrega
dentro da lógica da inclusão-exclusão. Agamben opera seu pensamento através da
análise da figura do “Homo Sacer” pelo paradigma da inclusão pela exclusão, ou
seja, para que a política se legitime, ela precisa do excluído ao qual tentará
incluir (seja como for, também com a sua eliminação), o que possibilita o
estado de exceção. O poder soberano é aquele que institui o estado de exceção, de
modo a validar a norma àquele que foge da mesma: o banido ou o excluído. Assim,
a lei se destitui, metamorfoseia-se e transforma-se para ser aplicada em uma
nova lógica própria, em nome de uma exceção que não se enquadra na norma, mas
que precisa ser enquadrada de algum modo. Esse é o nosso paradigma político
ocidental: a inclusão pela exclusão.
Por que a figura deste anómon, deste fora-da-lei, que implica
na hospitalidade absoluta, interessa ao pensador argelino? Porque o sem-nome
pode deslizar através da força de lei, tirana e arbitrária como ela é. As leis,
elas mesmas, podem, por sua vez, serem desconstruídas, já que se compõem e se
interpõem através de camadas (a justiça já não o é), este é o ponto derridiano,
o sem-nome, sem-documento, é um representante da comunidade que vem, é um
membro qualquer que não deixa captar sua singularidade.
Pensemos, pois, no
Édipo de Sófocles, que se desloca para o estrangeiro em busca de seu leito de
morte, no Édipo transgressor, parricida, naquele que representa o assassínio da
figura paterna do logos; desta forma,
naquele que incomoda e que decide confiar seu último segredo ao amigo Teseu:
Não um segredo vivo qualquer, mas um segredo quanto ao
lugar clandestino de sua morte, a morte de Édipo. Secreto saber, secreto quanto
ao saber onde morre, em suma, o grande transgressor, o fora-da-lei, o anómos cego que não pode ele próprio
confiar o segredo que ordena a outros guardar quanto ao lugar onde ele, o
estrangeiro, estará quando ser-morto. (DERRIDA, 2003, p.89)
Pensemos nesse outro
estrangeiro, a quem Édipo dedica seu derradeiro átimo, uma troca de afectos que
só dizem respeito aos quem vêm de fora, em um gesto de hospitalidade que
somente foi possível entre estrangeiros.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN,
Giorgio. A comunidade que vem.
Tradução de Antonio Guerreiro. Lisboa: Editorial Presença, 1993.
DERRIDA,
Jacques. Anne Dufourmantelle convida
Jacques Derrida a falar Da Hospitalidade. Tradução de Antonio Romane. São Paulo: Escuta, 2003.
DERRIDA,
Jacques. Dire L’événement, est-ce possible? Séminaire de Montréal, pour Jacques
Derrida. Paris l’Harmattan, 2011.
[1] O primeiro conceito criado para
propor esta teoria das multiplicidades é o conceito de rizoma. Ao longo do
projeto mil platôs o conceito de rizoma surge como o ponto de partida
para se pensar as multiplicidades por elas mesmas, visto que o fundamento do
rizoma é a própria multiplicidade. O rizoma não é exato, mas um conjunto de
elementos vagos, nômades, de maltas e não de classes.