A REPRESENTAÇÃO DA ARTE E DO SAGRADO EM 'BLESS ME, ULTIMA', DE RUDOLFO ANAYA


Gilberto Zolotorevsky Alves Junior
Mestrando do PPGLetras da Universidade Federal de Santa Maria

RESUMO: De certa forma, a arte e suas expressões afirmam classes, sociedades, gêneros, religiões e organizações políticas. Da mesma maneira, religião e arte nasceram irmãs, sendo indissolúveis até certo ponto da história, tendo a religião na arte seu objeto de adoração, como forma de cultuar Deus e deuses nos símbolos das esculturas, pinturas e outras formas de arte. O povo Mexicano e Mexicano-Americano tem em um dos vértices de sua identidade as crenças nas imagens, símbolos e ritos litúrgicos da Igreja Católica, sendo complementado por tópicos que, de certa forma, acompanham o arcabouço das crenças como as fiestas, a formação dos barrios, e festividades cristãs como o Dia de Los Muertos. No presente trabalho, tenho como objetivo traçar aspectos da maneira que a literatura chicana retrata a fé e a crença através de esculturas e pinturas e como são expostas nas obras de autores chicanos, principalmente em Bless me, Ultima, de Rudolfo Anaya, visando também encontrar pontos que se tocam quando da formação e afirmação identitária e da fé do povo chicano através da literatura e outras representações de arte.  

Palavras-chave: Bless Me, Ultima; religião; arte

ABSTRACT: To a certain extent, arts and its expressions affirm classes, societies, genres, religions, and political organizations. Religion and arts had their roots together, being somehow indissoluble to a given point in History, considering the fact that religion had in arts its object of worship, as a way of worshiping God and gods in the symbols of sculptures, paintings and other forms of art. Mexican and Mexican-American people have in one of the parts of their identities the belief in images, symbols and liturgics of the Catholic Church, being complemented by topics that follow the framework of beliefs like fiestas, the formation of barrios, and Christian festivities like the Dia de Los Muertos. In the following paper, I aimed to draw aspects of the way in which Chicano Literature portraits faith and belief through sculptures and paintings and the way they are exposed in the work of chicano authors, mainly in Bless Me, Ultima, by Rudolfo Anaya, aiming to reach touching points in regarding identity formation and affirmation as well as chicano faith represented in literature and other forms of art. 
  
Keywords: Bless Me, Ultima; religion; art



1. Arte e sagrado: representações e conexões
A noção de que os povos podem se (re)conectar evocando um passado, através de eventos e lugares comuns traz a dinâmica de um local de cultura e seus membros, perpassando política, ideologia, formação social e religião; legitimando um povo através dos diálogos entre o filosófico, o político e o estético. Chegando por vezes a encruzilhadas e entrecaminhos trilhados na literatura com objetivos claros de afirmação social e formação identitária.
De certa forma, a arte e suas expressões afirmam classes, sociedades, gêneros, religiões, organizações políticas. Da mesma forma, religião e arte nasceram irmãs, sendo indissolúveis até certo ponto da história, tendo a religião na arte seu objeto de adoração, como forma de cultuar Deus e deuses nos símbolos das esculturas, pinturas e outras formas de arte.
O Medievo, por exemplo, estrutura-se de acordo com as regras do Cristianismo, tendo na arte uma função doutrinária, servindo como suporte às pregações e tendo no fato de que grande parte dos fiéis era iletrada, eram utilizadas as artes para “tocar os corações” e afirmar e passar crenças e dogmas. Burke, 2004 ilustra de forma ímpar como o processo de “passar a mensagem” se dava considerando a arte:

[...] a iconografia quanto às doutrinas que ela ilustrava poderiam ter sido explicadas oralmente pelo clero, a imagem em si agindo como um lembrete e um reforço da mensagem falada, em vez de se construir em uma única fonte de informação. Considerando a questão da evidencia, as discrepâncias entre as histórias contadas através das imagens e as histórias contadas na Bíblia são especialmente interessantes como indícios da forma como o Cristianismo era visto a partir das camadas mais baixas. (BURKE 2004, p. 60)

A arte e sua aura sagrada trazem os objetos de adoração e de culto contrastando com o real e o cotidiano; religião e literatura, então, se imbricam na necessidade de ir além, de avançar um pouco fora da realidade, do finito, em um gênesis inseparável. Consideram-se áreas do sobre humano, nessa intensa e eterna busca pelo não palpável, busca por mundos diversos àqueles que nossa consciência reconhece. Existe nesse invólucro que une religião e literatura, e, de uma forma mais extensa, religião e arte, uma busca por um significado menos superficial das relações humanas, mostrando uma “realidade” diferente com possibilidades infindas, que por sua vez não são comunicáveis se não pelo simbolismo da arte e das palavras.
Assim, pode-se pensar a arte como um modo de expressar a religião simplesmente. Porém, a religião tem suas divisões e desacertos, as diferentes crenças e conceitos refletem um mundo de dogmas dividido. A fé parece muitas vezes professar a separação e a divisão. Em contrapartida, a arte é livre, seus significados se esvaem na libertação e sublimação da alma por meios sempre “lícitos”, não trazendo em suas concepções emocionais, sensoriais e intelectuais os barramentos religiosos. Não se faz guerra pela arte, da mesma forma que não existe (geralmente) uma necessidade intrínseca de minha interpretação de arte tem que ser a mesma sua; o que acontece quase sempre com a religião. A arte, logicamente, já teve seus revezes e lutas, fanatismos, intolerâncias e afins, porém, não existe comparação com o que acontece no campo religioso.
Os primórdios da arte cristã perpassam a importância que as imagens tinham na cultura Greco-Romana. Nos séculos II e III as artes religiosas e, principalmente, a arte sacra se faziam presentes nas igrejas em todos os seus ritos e liturgias, sendo o uso de imagens continuado na igreja católica. As experiências dos recém-convertidos ao cristianismo do século II tinham uma tradição de imagens advindas dos cultos pagãos, sendo uma boa “estratégia” dar continuidade às cerimônias com algo familiar aos novos adeptos da doutrina.
Quando Giotto di Bondone nos séculos XIII e XIV inovou e introduziu em sua obra a ideia de perspectiva, tendo sido considerada a ligação entre o renascimento e o medieval, houve a identificação das figuras dos santos com a aparência humana, aproximando-os de uma “realidade” mais palpável, trouxe, de certa forma, uma visão mais humanista do mundo. Como afirma CARRA, 2009, p. 5 “[...] Giotto é o primeiro pintor italiano moderno que recolhe os múltiplos aspectos da vida e os eleva a uma esfera onde o ideal e o real se completam mutuamente.”
Há um movimento na literatura chicana que tem uma ligação parecida com o que acontece na obra de Giotto. As esculturas e pinturas da Virgem de Guadalupe, por exemplo, retratam uma aproximação do ideal e do real, do humano e do divino na cultura e formação da identidade dos chicanos. É como se o movimento das artes na religião como representação do social e afirmação do homem como indivíduo tomasse, além do caráter educativo e evangelizador, uma forma que vai além do que as palavras possam exprimir. Importante ressaltar o que afirma Mello, 2010 sobre a “função” da poesia em contraste/concomitância à imagem na pintura e escultura:

Assim sendo, se a poesia se constituíra como principal veículo de reminiscência do passado e solidificação da cultura grega, a imagem não somente passou a concorrer com a poesia, mas intuir um teor interpretativo da essência dos fenômenos históricos mais intrínsecos da sociedade [...] com a imagem, os acontecimentos são visualmente revelados, e os deuses, os heróis e os homens (inferiores, comuns e melhores) passam a ganhar traços e formas (imagem-eidolon, imagem-eikones). (MELLO, 2010, p. 220).

Remonta do Renascimento tal “unificação” das artes, como ponto de partida para discussões e equalização, haja vista que, até então, a poética e a retórica tinham papel privilegiado nas artes, bem como o papel do artista na sociedade, que, como afirma Gonçalves, 1989 “se evidenciou o caráter científico do seu trabalho”. Exemplificando que, através de Leonardo da Vinci que “defendia a ideia de que a pintura e a escultura eram artes teóricas, tentando desfazer a antiga concepção do caráter artesanal, ou ofício manual das duas artes”.
O conceito de mimesis, ainda segundo Gonçalves, 1989, deu vazão ao pensamento clássico, sob o jugo de duas ideias centrais:

(...) uma, da antiguidade clássica, que consiste no aforismo de Simônides (século V) “a pintura é poesia muda, e a poesia, pintura que fala”. A outra, extraída da Arte Poética de Horácio ou Epistolae ad pisones, valeu como simulacro e força persuasiva para interpretações errôneas e consequências muitas vezes lamentáveis nas forçosas aproximações entre a poesia e as artes visuais.

Partindo desse pressuposto e considerando as artes segundo Platão e sua visão acerca do conceito de mimese, temos que a representação de um objeto seria uma cópia da natureza como ela é (no mundo), sendo esta uma cópia de uma natureza do mundo das ideias, superior. E teríamos, em consequência que há:

[...] na pintura e na escrita, conforme suas atribuições miméticas, a sujeição da forma natural (natureza divina) à forma real (natureza física), ou seja, os artistas traduzem, equivocamente, em termos de objetos materiais (artefatos), o ideal supremo. Assim, a pintura estaria no último grau triádico de afastamento da verdade, onde, no primeiro grau e importância se encontra o Absoluto, depois o criador (artesão etc.) e, por fim, o pintor, que por sua vez nada cria, mas imita. Dessa forma, na República, Platão explica: Deus criou a ama, o marceneiro a produziu no mundo e o pintor copiou-a (PLATÃO, apud MELLO, 2010, p. 225 ). 

2. Do centro à periferia, a arte sagrada na formação da identidade Chicana

 “Os espíritos estavam em pé, atordoados em frente à estátua da Virgem de Guadalupe à porta da Catedral de San Fernando, exaustos e sujos por mais um longo dia colhendo tomates.” (Santos, 1999, P. 24 – tradução nossa)

O México é um país sem uma religião oficial, porém, o último censo indica que 82% da população é católica. O povo Mexicano e Mexicano-Americano tem em um dos vértices de sua identidade as crenças nas imagens, símbolos e ritos litúrgicos da Igreja Católica, sendo complementado por tópicos que, de certa forma, acompanham o arcabouço das crenças como as fiestas, a formação dos barrios, e festividades cristãs como o Dia de Los Muertos.
Em contrapartida à Igreja e ao cristianismo de forma geral, existem as religiões provenientes do Complexo Mesoamericano, englobando o sul do México, a Guatemala, El Salvador, Belize e algumas partes da Nicarágua, Honduras e Costa Rica. Todas essas civilizações pré-colombianas que habitavam tal porção da América deixaram um apanhado de riquezas culturais e, por conseguinte, religiosas. Os Olmecas, Teotihuacanos, Astecas e Maias que ali viveram possuíam rituais religiosos riquíssimos, os quais ainda são cultuados por uma boa parte da população, tendo sido adaptados ao longo dos séculos.
As oferendas à Terra, os sacrifícios humanos, o politeísmo, a magia e a brujaria fazem parte da formação religiosa do povo mexicano e México-americano, trazendo os diferentes símbolos desses rituais para a expressão literária. Isso faz parte também da formação política, social e geográfica do México e, consequentemente, da parte do México que foi “comprada” pelos Estados Unidos no século XIX, haja vista que os centros cerimoniais determinaram o urbanismo dos territórios do que hoje conhecemos como México, tendo suas principais cidades nos arredores do que eram até o século XVI centros cerimoniais e centros de civilizações. Um bom exemplo disso são as pirâmides que eram construídas em adoração e manifestação aos deuses e se sobressaiam às cidades. Da mesma forma que as artes ao longo do tempo estiveram quase sempre condicionadas a uma forma de poder e ideologia, não fora diferente com os povos mesoamericanos.
De certa forma, a abordagem dos Espanhóis aos ancestrais indígenas limitou-os como seres criativos. Quando os Conquistadores desembarcaram em Anahuac, se espantaram com cruzes presentes em vários lugares da sociedade indígena e pensaram  logo que já havia tido um contato cristão que precedera o deles. A lenda de uma divindade das culturas mesoamericanas, Quetzalcóatl, cultuado pelos Astecas e Toltecas, trazia, segundo as representações da tradição oral, a imagem de um guerreiro branco de olhos claros, daí vem a acepção de que já havia tido um outro contato com o homem branco e uma certa cristianização. Reduziram o deus indígena a um simples missionário cristão, a figura de alguém de fora que iria “ajudar” os índios, deixando de lado sua história, imaginação e criatividade, relegando esses atributos apenas aos europeus.
Existe um movimento de religiões na tradição chicana que vai do cristianismo da religião católica aos cultos pagãos da tradição indígena dos maias, astecas e toltecas, às práticas de cura das curanderas como a personagem Ultima na obra de Anaya, e como os autores chicanos retratam a necessidade do povo chicano de “cura” de doenças físicas e mentais bem como as opressões sociais como forças constantes na comunidade, juntamente com o sofrimento causado pelas diversas lutas diárias, objeto de sua situação e posição social, pelo simples fato de serem o outro em uma sociedade que os discrimina (relação Norte-Americanos/Chicanos. As religiões e suas diferentes formas e vieses têm aí uma função social, uma função de trazer alento ao povo que sofre e que, através de sua crença, consegue sobrepujar as dificuldades das lutas diárias, ao mesmo tempo que “molda” a identidade do povo chicano como um povo de fé e esperança.
Dos lugares majestosos que nos foram deixados através da história, dos Jardins suspensos da Babilônia ao Colosso de Rodes, do Farol de Alexandria à Estátua de Zeus em Olímpia, do Stonehenge ao Coliseu de Roma, de Machu Picchu ao Taj Mahal, nos deixa a impressão que todos esses locais, de certa forma, são responsáveis pela formação da identidade dos povos.
Bruce-Novoa afirma que a “identidade não é para ser apenas fundada, mas sim, forjada, com uma atenção especial à história e à ideologia. (1990: p.134 – tradução minha). Adicionaria a essa citação o fato de que os lugares da história e da própria imaginação coletiva fazem parte da formação e afirmação identitária dos povos.

(…) a religião é coisa eminentemente social. As representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades coletivas; os ritos são maneiras de agir que surgem unicamente no seio dos grupos reunidos e que se destina a suscitar, a manter ou a refazer certos estados mentais desses grupos. Mas então, se as categorias são de ordem religiosa, devem participar da natureza comum a todos os fatos religiosos: também elas seriam coisas sociais, produtos do pensamento coletivo. No mínimo – pois no estado atual dos nossos conhecimentos nessas matérias, devemos guardar-nos de qualquer tese radical e exclusiva – é legítimo supor que elas sejam ricas em elementos sociais. (DURKHEIM, 2008, p. 38)

3. As representações religiosas em Bless me, Ultima de Rudolfo Anaya
O romance fala sobre o desenvolvimento psicossocial de um menino chicano chamado Antonio e que vive nas planícies do Novo México nos anos 40. Ultima é uma curandeira que vai morar com a família de Antonio, que tem seis anos. Existe desde cedo uma preocupação do menino em saber seu destino, em que, segundo sua mãe, ele deve seguir os votos eclesiásticos e ser padre, em contrapartida, seu pai quer que ele siga a lida do campo, sendo umvaquero. Quando ele está prestes a iniciar seus estudos para a primeira comunhão, ele começa a perceber fatos que o intrigam e o fazem entender a presença em sua vida do bem e do mal. Ele presencia a morte de Lupito, um bêbado veterano de guerra, e se pergunta a respeito da alma de Lupito, para onde ela irá.

“I had started praying to myself from the moment I heard the first shot and I never stopped praying until I reached home. Over and over through my mind ran the words of the Act of Contrition. […] Did God listen? Would he hear? Had he seen my father on the bridge? And where was Lupito’s soul winging to, or was it washing down the river to the fertile valley of my uncles’ farms? (ANAYA, 1972, p. 20-21)

Esse é um momento de epifania para Antonio. Ele tem seu primeiro “encontro” real com suas indagações de vida e morte. Seus primeiros questionamentos religiosos são feitos. No decorrer do romance, suas indagações e preocupações intensificam-se para entender as situações que ele está presenciando. Ultima, então, passa a dar uma visão diferente da vida a Antonio, ela tem um ponto de vista religioso relacionado aos povos indígenas, dando suporte a ele quando os ensinamentos da família e da igreja não fazem sentido. Através de lendas e estórias de povos ancestrais, Antonio passa a entender como ele chegara até ali, como seus antepassados haviam trilhado o caminho que hoje ele passa. Ele passa a entender então a natureza e as pessoas que o cercam de forma diferente, abrindo caminhos para a crença em “outros” deuses.
Há agora para Antonio outros poderes que diferem das possibilidades mostradas pela crença da igreja católica, na qual sua família sempre depositou sua fé. Ele ajuda Ultima a fazer uma cura de seu tio Lucas, que havia sido enfeitiçado pelas irmãs Trementina, e também presencia outra cura através de um ritual antigo feito por Ultima, passando assim a ver o mundo de uma forma diferente, aprendendo a lidar de forma melhor com seus medos, passando a aceitar a vida e os muitos desafios que ela apresenta.
Existe na obra um “experienciar” o sagrado por parte de Antonio, um encontro do menino com forças sobrenaturais expressas na natureza, tudo passa a ter um significado para ele: as árvores, os animais, a natureza em geral. Experienciar o sagrado traz um termo utilizado por Eliade, 2000, hierofania, que significa basicamente a manifestação do sagrado. Na visão da autora, todas as religiões são baseadas em hierofanias, e especialmente nascem de hierofanias, nascem dessas manifestações aos profetas e pregadores, nascem desses encontros sagrados.
Visito esse termo para dar referência à hierofania que traz consigo a formação identitária do povo Mexicano e, por conseguinte, México-Americano, e que traz à arte chicana, principalmente à religiosa, esse intercruzamento de arte oral, escrita, pintura e escultura. De acordo com a cultura popular mexicana, em 1531, um índio cristianizado estava andando perto do morro de Tepeyac, que era o lugar onde estava localizado o santuário à Mãe de Deus, quando ele ouviu uma linda música. Quando ele foi ver a fonte daquela melodia, uma senhora afável o interpelou em Nahautl, era Nossa Senhora. Ela então o enviou ao palácio do arcebispo do México em Tlatelolco para dizer que a Virgem Maria desejava um santuário sagrado no local da aparição para que ela pudesse dar todo o amor, compaixão, ajuda e defesa a todos os habitantes daquela terra. Ela então o enviou ao palácio do arcebispo do México em Tlatelolco para dizer que a Virgem Maria desejava um santuário sagrado no local da aparição para que ela pudesse dar todo o amor, compaixão, ajuda e defesa a todos os habitantes daquela terra. Como o arcebispo não estava convencido por ouvir o relato de um indígena tão simples recusou o pedido. Foi então que, como relata a cultura mexicana, a Virgem enviou Juan Diego a um local onde rosas estavam florescendo fora de época. Pediu que ele as colhesse e as colocasse dentro de um manto. Quando Juan desenrolou o manto em frente ao arcebispo, as rosas caíram no chão e a imagem da Virgem apareceu no manto. O povo mexicano trouxe esse evento à vida e o local se tornou o novo centro espiritual para o México colonial. Parte daí um local e uma imagem que, através de uma hierofania, tornaram-se centrais à cultura do povo Mexicano e México-Americano.
Por fim, é importante considerar o local mágico onde Antonio cresceu, as paisagens cheias de manifestações do religioso, do sagrado. O próprio nome do menino, Luna y Márez, denota força, poder, que o influenciam desde o nascimento. Um velho homem gritou: “This one will be a Luna, (...), he will be a farmer and keep our customs and traditions. Perhaps God will bless our family and make the baby a priest” (ANAYA, 1972, p. 5). Do outro lado, os Vaqueros gritaram: “He is a Márez, (…) his forefathers were conquistadores, men as restless as the seas they sailed and as free as the land they conquered. He is his father’s blood!” (ANAYA, 1972, p. 6).
No primeiro sonho de Antonio, ele retorna voando ao dia em que nasceu e vê seus parentes brigando para enterrar sua placenta nas montanhas ou no vale; em um momento em que as duas partes da família estavam em pé de guerra, sacando pistolas e se enfrentando, Ultima, que fazia o parto, grita: “Cease! (...) I pulled this baby into the light of life, so I will bury the afterbirth and the cord that one day linked him to eternity. Only I will know his destiny.” (ANAYA, 1972, p. 6). Por todo o restante da obra, Antonio procura por uma resposta, acordado ou dormindo para sua angústia.
A busca pela identidade perpassa, dessa forma, aspectos religiosos e de locus, o menino busca em seu passado, em seus ancestrais, respostas que possam defini-lo no futuro, que possam através da alteridade e dos encontros e desencontros com sua sociedade atual, construí-lo como indivíduo, como pessoa, revisitando o passado e construindo o futuro. 

Bibliografia

ANAYA, RUDOLFO A., Bless me, Ultima. Berkeley: Tonatiuh – Quinto Sol International, 1972.

BRUCE-NOVOA, Juan. Retrospace: Collected Essays on Chicano Literature. Houston: Arte Publico, 1990.

BURKE. P. Testemunha ocular: historia e imagem. São Paulo: Edusc, 2004.

CARRA, Carlo. GiottoARS (São Paulo),  São Paulo ,  v. 7, n. 13, June  2009 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-53202009000100013&lng=en&nrm=iso>. accesso em  16 /03/ 2015.  http://dx.doi.org/10.1590/S1678-53202009000100013

DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa: o Sistema totêmico na Austrália. 3ª ed. São Paulo: Paulus, 2008.

ELIADE, Mircea. Tratado de Historia de las Religiones. Madrid: Cristiandad, 2000

MELLO, S. J. “Ut Pictura Poesis e as origens críticas da correspondência entre a literatura e a pintura na antiguidade clássica.” Miscelânia, Volume 07, 2010, p. 215-241.

SANTOS, John Phillip. Places Left Unfinished at the Time of Creation. New York: Penguin Books, 1999, P. 24