Flávia
Wanzeller Kunsch
Mestranda
em Estudos da Tradução – UFSC
Resumo
Em sua
adaptação para o cinema de A Tempestade,
de William Shakespeare, a diretora norte-americana Julie Taymor apresenta a
seus expectadores uma nova leitura da peça com a modificação do gênero de seu
personagem principal, Próspero. Com sua Próspera ela permite uma revisão dos
valores inicialmente idealizados pelo dramaturgo inglês, mostrando no quão
significantes eles se transformam com essa alteração. A tradução do discurso da
película para o português potencializa a intenção da diretora agregando novos
valores ao discurso da peça. O objetivo deste artigo é com o resultado da análise
da dublagem e legendagem para o português o Brasil apresentar exemplos que
reverberam a intenção original de Taymor.
Palavras
chave: A Tempestade, discurso de gênero, análise de dublagem e legendas.
Summary
In her adaptation to the movies of William Shakespeare’s
The Tempest, the American director
Julie Taymor presents her audience with a new reading of the play by modifying
the gender of its main character, Prospero. With her Prospera she allows a
review of the values initially idealized by the English playwright, showing how
significant they become with such change. The translation of the film’s
discourse to Portuguese potentiates the intention of the director adding new
values to the play’s discourse. The goal of this article is to show examples
that reverberate Taymor’s original examples after the analysis of the dubbing
and subtitles to Brazilian Portuguese.
Key words: The
Tempest, gender discourse, dubbing and subtitle analysis.
A
Tempestade de William Shakespeare foi uma de suas últimas
peças, e considerada a última que ele escreveu sem o auxílio de outros
dramaturgos. Nela nos deparamos com a realidade de seu protagonista Próspero,
Duque de Milão traído por seu próprio irmão que usurpa seu ducado e o obriga a
se exilar com sua filha ainda criança, Miranda. Ambos seguem à deriva e, como o
próprio Próspero alega, chegaram sãos e salvos em uma ilha distante devido à
providência divina. Nessa ilha, Próspero vive com sua filha e Caliban, um
nativo que é considerado um monstro por seus oponentes. Essa peça é considerada
por seu contexto colonial, uma vez que Próspero assume o controle dessa ilha e
“domestica” Caliban, a quem tem por seu escravo. Sendo conhecedor de magia, e a
tem como sua arte, Próspero com o auxílio do espírito Ariel causa logo no início
da peça uma tempestade levando a naufrágio um navio que navegava pela costa de
sua ilha; nesse navio encontravam-se seus conterrâneos, entre eles seu irmão
usurpador Antônio, o Rei de Nápoles Alonso com seu filho Ferdinando entre outros. Após o acidente causado pela
tempestade todos tripulantes encontram abrigo na ilha e o plano de vingança de
Próspero tem seu início. A Tempestade de
Shakespeare possui em si algumas das características tão bem narradas por seu
autor em outras de suas peças: romance, política, ganância, traição, magia,
comédia. Sendo Próspero o mestre da ilha e também autor de toda a feitiçaria
que comanda muitos de seus eventos, ele se torna sua voz imperativa com atitudes
e discurso manipuladores consegue realizar todas as artimanhas necessárias para
atingir seu objetivo e trazer a verdade à tona, para que no fim da trama ele
conquiste não apenas seu ducado, mas também seu retorno e de Miranda a Milão.
Em 2010 a diretora norte-americana Julie Taymor
realizou sua própria versão de A Tempestade,
porém transformou o protagonista de Shakespeare em uma mulher, e seu filme faz
provar que essa possibilidade convém, ou poderia convir, à peça. Mediante o
texto original o filme faz todo sentido, pois as alterações necessárias para a
mudança de gênero do discurso não impediram que a mensagem inicial do texto
dramático fosse emitida, mas algumas das questões do, neste caso, da personagem
permitem novos ângulos de visão e interpretação da estória.
Com a alteração de sexo, o discurso de um personagem
para a outra – Próspero para Próspera – permite observar como a questão de
gênero se comporta na tradução. Na versão brasileira do filme – dublagem e
legendagem – acontece um fenômeno que dificilmente seria observável em língua
inglesa: como a adaptação do personagem para o feminino enuncia melhor a
questão de gênero em língua portuguesa. Este trabalho não se baseia em analisar
o texto shakespeariano, mas como a tradução para a dublagem intervém no
discurso da personagem principal para o Português do Brasil marca melhor a
intenção original de sua diretora.
Um próspero discurso
If Prospero were Prospera, does it work? (…) The next
step was: “Is this a trick? Is this a gimmick?” It can’t be a gimmick, it has
to work. So we decided to do a reading and obviously we changed all the “he’s”
to “she’s”, and the ‘lordes’ to ‘ma’am’, but some of the words are hard to
change, for instance, “master” does not become “mistress”… it’s just… we don’t
have a word for female that is equivalent to “master”, so “master” stayed “master”.
But the main change that we had to do was the back story. (Taymor,
2010, 00:11:49 à 00:11:51 (…) 00:12:16
à
00:12:46)[1]
Nos extras do DVD – Raising the Tempest – Julie Taymor apresenta ao expectador o
processo de criação de seu filme e com seu enunciado já é possível iniciar as
primeiras observações de mudança sofridas com a alternação do gênero e também
um dos primeiros conflitos de tradução que podemos abordar aqui. Algumas das
palavras cruciais para essa transformação, entre elas: ‘father’, ‘sir’, ‘duke’,
possuem seus equivalentes em português: ‘mother’, ‘ma’am’, ‘duchess’ (mãe,
senhora, duquesa), mas a problemática encontrada para ‘master’ em língua
inglesa é facilmente solucionada em português.
De acordo com o Longman Dictionary of Contemporary
English[2]
as várias definições dadas para a palavra ‘master’ em sua maioria se referem a
posições privilegiadas, ou de poder, e algumas ligadas direta e especificamente
ao sexo masculino, enquanto que no caso de ‘mistress’, embora haja definições
que remetem à posição de liderança que uma mulher possa ocupar, como o uso
antigo da palavra para se referir a uma professora, a primeira oferecida é a do
papel da mulher enquanto amante de um homem casado. Mesmo havendo ainda dentre
as definições que uma ‘mistress’ possa ser uma mulher em controle de alguma
situação devido suas habilidades, é impossível não compreender a opção de
Taymor em manter “Master” para sua Próspera para que a denotação e submissão sexual
não fosse agregada à personagem.
A concepção de Taymor permite a visibilidade do
tradutor, que se faz presente na tradução para a dublagem e legendagem da
película lançando mão da heterogeneidade do discurso da tradução, essencial
para estabelecer a importância da representação de gênero proposta pelo filme:
Trazendo esta noção de heterogeneidade
constitutiva para o estudo sobre o processo tradutório, podemos afirmar que a
produção de sentido pelo tradutor – na leitura do original e na escrita da
tradução – é determinada pelo interdiscurso. A heterogeneidade do discurso da
tradução se deve, portanto, não só ao fato de que está ali presente a voz do
autor, além da voz do tradutor, mas porque qualquer discurso é
constitutivamente heterogêneo. Sempre outras vozes o atravessam como um
discurso transverso e lhe dão sustentação como um pré-construído. (Mittmann,
1999, p. 227-228).
O papel do outro neste caso torna-se “da outra”. A “generização”
do personagem permite a marcação de um discurso feminino e feminista – o plano
de vingança de Próspero contra seus mau-feitores do passado se torna um plano
contra aqueles que tramaram não apenas na derrubada do duque, neste caso marido
de Próspera, mas pelo exílio imposto a uma mulher e sua filha. Próspera é uma
mulher com liberdade e acesso à leitura e a prática de “sua arte” – ainda que
concedida por seu falecido marido, como é explicado ao longo da narrativa de
Taymor – e isso causa incômodo nos membros (masculinos) da corte de Milão.
Usa-se o artifício da inquisição para expulsar a bruxa, que neste caso é,
claramente, uma mulher com acesso à pesquisa e ao conhecimento. Uma atitude
covarde. A usurpação de Antônio ultrapassa o campo político, demonstra a
fragilidade masculina mediante a imagem de uma mulher de poder; no caso de
Próspera sua imagem ameaçadora vai além de seu papel político dentro da corte
de Milão, ela é detentora de conhecimento.
A interpretação de Helen Mirren,
juntamente com a concepção e roteiro de Taymor, permitem outra leitura da
personagem: Próspera é uma amalgamação de dois personagens no texto original da
peça:
PROSPERO: Thy
mother was a piece of virtue, and she said thou wast my daughter; and thy
father was Duke of Milan, and his only heir and princess –no worse issued.
(…) and Prospero the prime duke, being so reputed in
dignity, and for the liberal arts without a parallel, those being all my study,
the government I cast upon my brother and to my state grew stranger, being
transported and rapt in secret studies. (Shakespeare,
2001, 1.2.663)
Essa
próspera é virtuosa não somente na sua condição de mãe e mulher mas também por
possuir as características do Próspero original: duquesa, digna, culta; seu
exílio enquanto mulher permite com que toda a ação que a personagem trama a
partir da tempestade no início do filme faz todo sentido com seu discurso empoderado.
Como a própria Taymor descreve (também nas informações especiais), esta é uma
mulher que tem pelo o que lutar, o que vai muito além do que um homem lutando
pela reconquista de sua posição de poder.
JULIE TAYMOR: Well, in our version Prospera was the
wife of the Duke of Milan, Who was very liberal and very supportive of her
studies, but in this era women were not allowed to study the sciences, the dark
sciences, the white sciences, alchemy. So, upon the death of her husband she
became the Duke, which is also a possibility, women were Dukes. And her younger
brother finding this an opportunity, had her convicted of witchcraft, and she’s
put on this bark with her daughter and shipped off. And, of course they end up
on this island and twelve years later the events happen.
HELEN MIRREN: I think it becomes more of a thing that
was done to her gender as much as her person.
J.T.: She always harbors that within her. It’s a whole
other way of understanding it, it’s not the old man in the island with a young daughter;
this is someone who’s really got something to fight for. (Taymor,
2010, 00:13:32 à 00:14:13)
É
nesse aspecto da personagem que a tradução para o português se faz pertinente,
pois a marcação de palavras femininas agrega valor à concepção e interpretação
da personagem e permite maior compreensão de o quanto essa alternação de gênero
se faz imponente.
As facetas de poder de Próspera
Nesta seção exemplificarei e
comentarei algumas amostras retiradas do texto da peça e do roteiro do filme
como foi montado o discurso de Próspera enfocando nos desvios realizados nas
legendas e na dublagem para o português. É interessante dizer que o fato de o
roteiro do filme ser praticamente o mesmo do texto original da peça –apenas com
algumas eliminações de falas, alteração na ordem de certas cenas e, como já
dito anteriormente, a alteração do vernáculo para a adaptação intencional de
gênero – facilita o processo de pesquisa deste trabalho não apenas na
observação das mudanças iniciais do texto dramático para o roteiro do cinema já
com as mudanças de gênero, como também na observação da versão brasileira do
discurso do filme. É interessante
também notar que a maioria dos exemplos selecionados parte das falas de personagens
que são subordinados a Próspera: Ariel, Caliban e sua filha Miranda. Embora
esta última não seja sua escrava, como os demais, ela lhe deve obediência por
ser sua filha. Todos esses exemplos reforçam a tese deste artigo, de que a
versão brasileira de dublagem e legenda empoderam a idealização de Taymor para
sua personagem com vantagem sobre o personagem masculino de Shakespeare: mãe,
feiticeira, colonizadora e pessoa política.
Algumas
vezes, esses outros discursos podem ser localizados no próprio texto. Trata-se
aí do que Authier-Revuz chama de heterogeneidade mostrada, que é uma forma
lingüística de “representação de diferentes modos de negociação do sujeito
falante com a heterogeneidade constitutiva do discurso” (ibid., p. 26). A forma
mostrada de heterogeneidade opõe o um do discurso ao outro de fora dele. Ou
seja, ela circunscreve e opõe o outro ao resto do discurso, à suposta
homogeneidade, aponta para o exterior delimitando o interior. Mas como o
discurso é constitutivamente heterogêneo, essa unidade é, na verdade, ilusória,
e a heterogeneidade mostrada sustenta essa ilusão, que é necessária para que se
produza discurso. Por isso, as formas mostradas são, em relação à
heterogeneidade constitutiva, “ao mesmo tempo um sintoma e uma defesa” (ibid.,
p. 34). (Mittmann, 1999, p. 228)
A
construção do discurso de Próspera e a possibilidade de levantar pontos em seu
favor enquanto personagem feminina é permitida graças a essa heterogeneidade
constitutiva do discurso que é facilitada, e mais bem marcada, pela flexão de
gênero da língua portuguesa. Embora a adaptação da diretora seja bem elaborada
seu discurso em língua inglesa falha na complementação do seu lugar de poder
dentro da narrativa. Em alguns casos em que a personagem recebe qualquer
descrição é importante a observação dessa flexão da língua de chegada, pois sua
construção enquanto mulher é fundamental para o sucesso de sua concepção. Os
exemplos elucidados a seguir facilitam a melhor interpretação da personagem na
versão dublada destacando que, embora ela esteja num lugar que foi concebido
originalmente para um homem, não se faz necessário que a personagem se aproprie
de seu discurso masculino podendo assim ser vitoriosa dentro das demarcações de
seu gênero.
- Feiticeira
O tratamento que Ariel sempre endereça a Próspera
deixa evidente seu nível de subserviência e admiração a reconhecendo como sua
poderosa superiora, atributo que em momento algum é dirigido a Sycorax, mãe de
Caliban, antiga moradora da ilha e também feiticeira que aprisionara Ariel em
uma árvore antes de morrer o deixando para ser liberto por Próspera. De modo a
se adequar ao português seu discurso sofre as alterações necessárias e
demonstram essa relação de poder entre os dois. Na Figura 1[3],
a fala do espírito em sua primeira aparição em cena como ele se dirige à Próspera
já observa-se a alteração de ‘sir’ para ‘dame’. Dando seqüência, ele se refere
a ela como ‘great master’ que para a dublagem é traduzido como ‘grande mestra’,
nota-se assim o desvio na tradução do substantivo ‘mestre’ o adequando à
personagem e pelo vocativo estabelecer o que ela de fato é: mestra de seu
espírito a quem ordena que realize algumas de suas tarefas em seu plano de
vingança.
Inglês
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Texto
original
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Texto
adaptado para o filme
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ARIEL: All
hail, great master! Grave sir, hail I come to answer thy best pleasure;
(1.2.664)
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ARIEL: All
hail, great master! Grave dame, hail I come to answer thy best pleasure;
(00:11:09 à00:11:16)
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Português
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Dublagem
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Legenda
|
ARIEL: O, salve grande mestra! Salve, senhora,
salve! Vim para em tudo obedecer-te. (00:11:09 à00:11:16)
|
ARIEL: Salve, minha grande mestra! Salve, Senhora!
Vim para em tudo obedecer-te. (00:11:09 à00:11:16)
|
Figura
1.
Apesar de Ariel possuir seus próprios poderes
sobrenaturais, Próspera possui o conhecimento, por assim dizer, acadêmico
daquilo que chama de sua arte uma vez que o filme deixa bem claro que ela tinha
permissão e acesso aos livros de ciências ocultas, e num ambiente de contraste
entre personagens civilizados e selvagens ela se sobrepõe a seu espírito. Ela não é simplesmente um mestre de feitiçaria,
mas uma Mestra capaz de comandar acontecimentos da natureza e seus seres com um
conhecimento genuinamente adquirido, prova disso está exposta na Figura 2
quando Ariel modifica ‘master’ com o adjetivo ‘potent’. Felizmente a tradução
não foi literal utilizando o equivalente ‘potente’ de uso adequado a ambos
gêneros, e sim ‘poderosa’. Próspera de fato foi poderosa, e potente, o
suficiente para o retirar da maldição que há mais de uma década sofria, e ela
utiliza isso em sua vantagem o mantendo em seu comando tanto sob a ameaça de o
devolver para o tronco da árvore, como com a promessa de libertá-lo, como o faz
no fim da estória.
Inglês
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|
Texto
original
|
Texto
adaptado para o filme
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ARIEL: What
would my potent master? (4.1.672)
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ARIEL: What
would my potent master? (00:11:09 à00:11:16)
|
Português
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Dublagem
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Legenda
|
ARIEL: Que deseja mestra poderosa? (00:11:09 à00:11:16)
|
ARIEL: Que deseja minha mestra poderosa? (00:11:09
à00:11:16)
|
Figura
2.
- Mãe
Na Figura 3 Miranda, em um momento de temor pela
vida de seu recém-eleito Ferdinando, implora sua mãe que não o ameace com seu
cajado e sua arte, pois, na tentativa de testá-lo a fim de saber se está a
altura de ser esposo de sua única filha o ameaça a se submeter a tarefas
humilhantes, constatando até que ponto vai sua determinação em desposá-la. No
momento de sua intervenção o filme mostra Miranda a chamando de ‘mother’; a
opção de referir-se a Próspera como ‘mãe’ neste momento preferivelmente lhe
atribui destaque na posição em ocupa sabendo que, pelas leis do patriarcado, se
Próspera e Miranda não tivessem sido exiladas doze anos antes dos
acontecimentos presentes esse arranjo matrimonial estaria sendo realizado na
corte de Milão por serem todos os envolvidos membros da realeza italiana, e
mesmo sendo Próspera uma Duquesa ela ainda é uma mulher e provavelmente a
concessão da mão de Miranda a Ferdinando seria realizada por seu tio Antônio.
Mas todos se encontram na ilha onde ela é mestra dos acontecimentos.
Inglês
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|
Texto
original
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Texto
adaptado para o filme
|
MIRANDA: ‘Beseech
you, father!
PROSPERO:
Hence! Hang not on my garments.
M: Sir, have
pity; I’ll be his surety.
(1.2.666)
|
MIRANDA:
‘Beseech you, mother!
PROSPERO:
Hence! Hang not on my garments.
M: Mom, have
pity; I’ll be his surety.
(00:26:18 à 00:26:22)
|
Português
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Dublagem
|
Legenda
|
MIRANDA: Compaixão, mãe!
PROSPERO: Solte minhas vestes, menina!
M:
Mãe, tenha piedade. Confie em mim.
(00:26:18
à 00:26:22)
|
MIRANDA: Compaixão, mãe!
PROSPERO: Solte-me.
M: Piedade, senhora. Confie em mim.
(00:26:18 à
00:26:22)
|
Figura
3.
Portanto, aqui ela tem o poder de não apenas
conceder a mão de sua filha, mas enquanto mulher decidir se ele será bom marido
para ela, tendo ela sido esposa um dia, é a melhor pessoa, nesse contexto, para
planejar o futuro de Miranda. Enquanto homem Próspero permite o enlace visando
apenas os benefícios políticos que obterá do casamento de sua filha com o
futuro rei de Nápoles; enquanto mulher, Próspera possui o conhecimento empírico
de ter um marido permissivo para os padrões da época como fora o seu. Como mãe
ela trama para que sua filha goze da mesma sorte.
- Colonizadora
A
Tempestade é sempre reconhecida como uma peça colonialista e
Próspero incorpora o papel do colonizador sobre o selvagem colonizado,
domesticado e alfabetizado na língua da metrópole, como Caliban deixa bem claro
com todo seu discurso. Desse mesmo discurso ele se aproveita para praguejar sua
mestra de modo que ela entenda sua intenção evidenciando todo seu ódio, ele se
sente traído, pois em sua primeira cena ele declara que apenas lhe mostrou todo
o território da ilha porque a amava, e ela não lhe demonstrou perdão quando
tentou possuir Miranda o colocando em seu lugar de escravo:
CALIBAN:
Esta ilha é minha, herdei-a de Sycorax, minha mãe, roubaste de mim.:
Adulavas-me, quando chegastes aqui, fazias-me carícias e me davas água com
frutas, me ensinaste o nome da luz grande e da pequena, que de dia e de noite
sempre queimam. Naquele tempo, eu te amava, e te mostrei as qualidades da ilha,
as fontes frescas e as salgadas, onde a terra era fértil, onde era estéril...
Maldito seja eu por ter feito isso. (Taymor, 2010, 00:18:25 à
00:18:54)[4]
Caliban
é o dono legítimo da ilha, porém sua condição de escravo se deu a partir do seu
atentado de estupro, mas em sua lógica, ele se achou no direito de fazê-lo.
Próspera por sua vez não amenizou nas escolhas de suas punições e lançou mão de
seus poderes para garantir que ele sentisse dores quando o achava merecedor. O
excerto mostrado na Figura 4 traz Caliban e uma de suas pragas a Próspera. No
discurso original ele a chama de ‘tyrant’, que em língua inglesa é utilizado
para ambos os sexos, mas novamente na dublagem ela é categorizada como
‘tirana’, ponto que estamos marcando com este artigo.
Inglês |
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Texto
original
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Texto
adaptado para o filme
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CALIBAN: I’ll
show thee the best springs; I’ll pluck thee berries; I’ll fish for thee, and
get thee wood enough. A plague upon the tyrant I serve. (1.2.666, grifo nosso)
|
CALIBAN: I’ll
show thee the best springs; I’ll pluck thee berries; I’ll fish for thee, and get
thee wood enough. A plague upon the tyrant I serve. (00:41:19 à 00:41:38)
|
Português
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Dublagem
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Legenda
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CALIBAN: Hei de mostrar-te as fontes saudáveis; eu
colherei frutas frescas para ti; eu pescarei para ti e trarei muita lenha.
Que a peste carregue a tirana a quem estou preso. (00:41:19 à
00:41:38)
|
CALIBAN: Hei de mostrar-te as fontes mais
saudáveis. Colherei frutas. Pescarei parati e trarei bastante lenha. Que a
peste carregue a tirana a quem estou preso. (00:41:19 à
00:41:38)
|
Figura
4.
A importância da qualificação de Próspera enquanto
‘tirana’ lhe permite um papel que a condição do seu genro não lhe permitiria no
século XVII quando a peça foi escrita, o de colonizadora. Mulheres contribuíram
nas colonizações que aconteceram, mas nunca enquanto líderes das colônias, como
Próspera é, ainda que seja em uma ilha para a qual fora exilada, mas ela é
superior a Caliban enquanto homem e através de sua tirania pode controlá-lo e
proteger a si e sua filha de sua malícia, e mais a frente na estória de sua conspiração
para assassiná-la. Fosse ela diferente com ele quanto a seus instintos
selvagens a integridade de Miranda teria sido violada, e próspera não seria
dona de sua ilha.
Apesar desta relação turbulenta com Caliban o
desfecho de suas relações no final do enredo permite o retorno daquela ternura
inicial entre ambos quando Próspera está deixando sua cela ela lança um olhar
maternal a Caliban, temendo, quiçá, por seu futuro de solidão; ele, por sua
vez, permite a confirmação dessa última expressão de afeto por sua parte e
quando a câmera se aproxima do rosto nota-se uma lágrima já a escorrer. Ela foi
uma tirana, mas também lhe fora uma potente mãe de aluguel.
- Pessoa
política
Nas cenas finais Próspera finalmente se depara com
seus conterrâneos e pode lhes revelar a verdade acerca de seu naufrágio e
retomar seu ducado. Logo após se revelar Alonso questiona como ela pode estar
viva. A maneira como se remete a ela, na terceira pessoa mesmo estando ela
diante de seus olhos, demonstra sua desconfiança com a possibilidade de ela
estar ‘living’, ou ‘viva’ (Figura 5), pois depois de tantos mistérios ocorridos
a ele e seus companheiros seria bem provável que ela fosse uma miragem. Sua incredulidade
é crível, pois como poderia uma mulher ter sobrevivido à provação que fora
exposta? Ela superou toda a atribulação e graças a Gonzalo – que lhe dera seus
livros no momento de sua partida – pode continuar com suas práticas e se
reerguer diante seus inimigos. Seguindo esse questionamento, o fato de ele se
referir a ela na terceira pessoa levanta outro ponto importante reforçado pela
interpolação da tradução, pois, mesmo que esse artifício tenha sido usado
originalmente para se referir a Próspero enquanto uma miragem, o fato de ele
estar se referir a uma mulher pode fazer uma alusão a um discurso machista que
a coloca numa posição inferior e uma visão em posição de objeto, e não como sua
interlocutora, tratando-a dessa forma de igual para igual: dois indivíduos em
posição de poder político e em posição de liderança.
Inglês
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Texto
original
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Texto
adaptado para o filme
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ALONSO: (…)
But how should Prospero be living and be here? (5.1.674)
|
ALONSO: (…)
But how should Prospera be living and be here? (01:33:49 à01:33:51)
|
Português
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Dublagem
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Legenda
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ALONSO: (…) Porém, como pode estar Próspera viva e
nesta ilha? (01:33:49 à01:33:51)
|
ALONSO: (…) Porém, como pode estar viva Próspera e
nesta ilha? (01:33:49 à01:33:51)
|
Figura
5.
Próspera está viva, em corpo, espírito e
consciência, e viva o suficiente para retomar seu ducado, e pode também conceder-lhes
seu perdão. É importante frisar que sua benevolência está acima de ser mulher,
mas pela sua vivência e toda a superioridade de conhecimento que seus doze anos
de exílio lhe garantiram. Novamente o seu gênero se destaca neste feito, pois
ela foi politicamente competente em sua trama de modo que restaurasse seu
ducado e adquirisse sua liberdade podendo retornar para sua terra como
vencedora, tendo vencido o sistema patriarcal de sua era, podendo assim se
desfazer de seu cajado, pois já não mais necessita de sua arte para que seja
bem sucedida em seu retorno.
Meio a tantos artigos que tratam “do que se perde
com a tradução”, esta foi uma tentativa de compartilhar uma análise que segue
no sentido oposto a esse dilema de estudos tradutórios. Neste caso, a tradução da
dublagem e legendagem bem sucedida agregou mais valor à voz de um personagem
com grande reputação literária dentro da obra Shakespeariana, tirando de si
algo que pela sua mera existência lhe garantiria poder: seu sexo. A formação do
discurso de Próspera em português permite que seus expectadores adquiram uma
compreensão mais abrangente da questão de gênero abordada por sua Julie Taymor,
e oxalá haja mais e mais produções como esta que permitam não apenas a
expressão mais clara quanto a desigualdade dos sexos, mas que aumente a
conscientização da importância e da relevância do assunto, seja na arte, na
tradução ou na sociedade.
REFERÊNCIAS
- A TEMPESTADE. Direção:
Julie Taymor. Miramax, 2010. DVD (110 minutos)
- Longman Dictionary of Contemporary
English. Longman Group Ltd,
England, 1995.
- MITTMANN, Solange. A
heterogeneidade e a função tradutor, Florianópolis, UFSC, 1999.
- SHAKESPEARE, William
S. The Tempest. Encontrado
em “The Complete Works of William Shakespeare”, Gueddes & Grosset,
Londres, 2001.