O TOCADOR DE CHARAMELA EM UM NAVIO CONTANDO ESTÓRIAS


Francisca de Lourdes Souza Louro
Dra. em Poética e Hemenêutica. UC.


Era a única herdade que recebera do pai,que
por sua vez recebera do avô
e este do bisavô
e este
de toda uma geração.
(O tocador de charamela (p.37))
RESUMO

As duas obras de Erasmo Linhares estão estruturadas em formato de contos. O contar (do latim computare) uma história, em princípio, oralmente, evoluiu para o registro das estórias por escrito que, posteriormente, com essa criação, percebeu-se e estudou-se a figura do narrador que assumiu esta função: a de contador-criador-escritor de contos, afirmando, então, o seu caráter literário. O contar nem sempre tem referência ao acontecido, não tem compromisso com o real e, tal como o tamanho, literatura não é documento, é literatura. Oconto literário se apresenta como novo florescimento artístico na concepção histórica da realidade. Como o romance, apresenta as mesmas relações de estrutura, lógico que com uma curta história. Muito já foi formulado e discutido em favor da arte de contar. Vladimir Proppestudou as várias formas para determinar as constantes e variantes dos contos, comparando suas estruturas e sistemas. Diz o referido autor que antes de qualquer coisa que se pensasse sobre essa natureza de literatura seria necessário entendê-las como histórias fantásticas, histórias tomadas da vida cotidiana e histórias de animais, e ou enquadrar o mesmo conto, em mais de um tipo destes três. Não usaremos de classificação neste estudo, a referência a Propp é somente para esclareceros estudos em favor dessa estrutura narrativa chamada conto.

Palavras-chave: Conto, histórias, cultura, construção de sentidos.

ABSTRACT:
Erasmo Linhares’ two works are organized in the format of a tale. Telling a story (Latin: computare), being an oral act in principle, developed to the written register of the stories. Subsequently, as the tales were being put into writing, the figure of the narrator who accept this role became apparent and started do be studied, i. e., the tale teller-creator-writer. This fact was responsible for stating his literary character. Telling has not always had as reference real events, since it does not compromise with the real. As in the case of the size, literature is literature; “size does not matter”. Literary tale presents itself as a new artistic development inside historical opinion of reality. Such as a novel does, literary tale presents the same relations of structure, logically with a short story. Much has already been written and discussed in favor of the art of telling. Vladimir Propp looked at various ways of determining the constants and variants of a tale, comparing its structure and systems. According to Propp, first and foremost it is considered about this nature of literature, there is a need to know them as fantastical stories, stories which were extracted from everyday life, as well as stories about animals. There is still a need of framing tales into more than one of these three types. We will not use such classification in this study. References to Propp were used only to clarify studies in favor of these narrative structures called tale.
Keyword: Tale. Stories.Culture.Construction of meaning.

Um pouco sobre o autor extraído de seus livros.
Erasmo Linhares é amazonense de Coari, nascido em 02/06/1934. Foi alfabetizado por sua mãe e depois estudou em Grupos Escolares nas primeiras informações e, depois cursou o ginasialno Colégio Amazonense  D. Pedro II. Iniciou-se no jornalismo aos 15 anos de idade e foi radialista na antiga Rádio Rio Mar. Bacharelou-se em Comunicação Social pela extinta Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da U.A. Logo após sua diplomação, recebeu convite para lecionar no mesmo curso, sendo barrado por implicações com o Regime Militar de 1964. No entanto, em 1978 alcançou a docência, através de concurso público lecionando no Curso de Comunicação Social por quase 20 anos.  Foi pós-graduado, pela UA/INPA em Geografia da Amazônia.
            Erasmo foi membro do conselho Fiscal do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Amazonas; foi membro do Clube da Madrugada e da União Brasileira de Escritores. Recebeu o diploma de Amigo da Marinha,ganhou o troféu de Personalidade das Comunicações, por iniciativa da Caixa Econômica. O Sindicato dos Radialistas deu-lhe o título de Microfone de Ouro, como também, foi merecedor do Baiacu de Ouro, prêmios que lhe deram destaque e consagraçãono cenário radialístico da cidade de Manaus. Não se deve deixar de mencionar o destaque que deu à base educacional como conselheiro do Movimento de Educação de base- MEB-MOBRAL.

Começo de uma viagem do imaginário Amazônico.
Na apresentaçãoda obra,O Navio e outras estórias, Flávio Ferreira Farias, faz uma assertiva deque “não há como deixar sem importância a linguagem utilizada nesta bela obra. Leve, descompromissada com o linear arredio e introspectivo da erudição mal-entendida”.
É por essa linhada erudição que discorre o autor ao descrever a mal-entendidaalma do caboclo.  O viés deste trabalho é perceber como estão articuladas as ideias e a composição dos significados na condensação simbólica dos mesmos. A imagem é condiçãohumana: Épica, dramática ou lírica. Disso resulta, contudo, que os conflitos dramáticos se apresentam a nós a partir de histórias sociais, ou que alguém já contou.  O recurso linguístico de palavrório farto e consistenteserá mostrado, apenas, na composição da estrutura narrativa como fonte de conhecimento que o autor passa ao leitor.
Este empreendimentoestá compostoem 24 contos e, pela proposta que nomina o livro, “O Navio”, logo se julga que a arte é bem próxima das narrativas dos viajantes e/ou dos pescadores, gente que vive a contar grandes (des)aventuras, além de se afirmar numa concepção de subjetividade e se apoiar em um conjunto de ideias de oralidade e de escritores anteriores. Os textos literários, obviamente, são alimentados pela memória da sociedade comum, isso mostra que podem sertransformados incessantemente pela “linguagem não sóas relaçõesque as palavras entretêm consigo mesmas, utilizando-as além de seus sentidos estritos e além da lógica do discurso usual, um texto móvel, capaz mesmo de não conter sentido definitivo ou incontestável”(D’ONOFRIO:2001;14).
Sabe-se que o conto é uma narrativa curta e, normalmente, tem um final insólito, ou melhor, nada que agrade o leitor que é levado a deduzir na parcela de sentido do mundo o que a narrativa encerra, “daí advém”, talvez,o “mal- entendido”. No entanto, sob o ponto de vista hermenêutico filosófico, perceber quenem a diminuição dos elementos estruturais tiram-lhe o valor estético de sepoderconferir  ao conto uma grande densidade dramática  nascorrespondentes  imagens relatadas do passado,  e, sendo possível lembrar Ricoeur dizendo-nos, que se deve“perceber como a memória trabalha a palavra “reconhecimento” tão rica em ramificações no plano lexicográfico”, o que a torna familiar, homérico.
O tema da viagem tem sempre essa referência secular, marcante no arquivo da memória, pelas ramificações que empreende em novas propostas do ato de narrar.“A fenomenologia reata assim com uma distinção familiar à língua grega entre mneme e anámnesis consagrada pelo notável escrito de Aristóteles cujo título latino tornou-se familiar: De memoria etreminiscentia” (RICOEUR,2006,125), em que sepode percebera reduplicação do problema,  mostrado, na diversidade dos traços exposto em cada narrador, a arte de contar o tema da viagem.
            Inicialmente tem“O Capitão”, texto que constitui a partida desse conjunto deviagem de aventuras de comunicação verbal chamada Conto. Nesta narrativa acontece, bem a propósito, a viagem de um saqueador Capitão da Provença, homem que dava vexame para seus comandados. Brait (2010)diz que “a fronteira dos sentidos, a boa literatura é uma janela aberta para o mundo, graças à sensibilidade do escritor atento à vida, à arte que reinventa”. O leitor entra numa cena englobante, o mar revolto de tormentosa tempestade e,não sendo suficiente, os grumetes e o imediato são mostradoscom doenças de caírem-lhes os dentes. Uma réplica dos antigos nautas do mundo europeu. Vejamos um fragmento do que se fala:
Uma nau que aporta de arcas vazias, o convés sem nada que pudesse despertar interesse. O rei não quis recebê-lo. O monarca queria ouro e prata. Não se interessava por heróis e muito menos pelas aventuras do mar dos mundos, nem mesmo de novos continentes que poderiam ser seus. Só queria a corte rica, faustosa, pomposa, farta, um monumento sob cujos pés a Europa se pusesse de joelhos.
O capitão era um homem gordo, baixo, que usava sempre uma peruca branca, de franjas para esconder a calvície. Era um piscívoro.[...] Mas o velho lobo, bêbedo de rum e vinho que havia ingerido em demasia,[...]. O capitão acordou e subiu ao tombadilho, ainda cambaleante. Viu os marujos no trabalho de consertar as velas destruídas pelo vento. A tacaca escorria pelas axilas peludas dos velhos marinheiros, labutando sob sol escaldante que sobreveio à tempestade.[...] Os ventos propícios empurraram a caravela para a frente, rumo do Norte. E navegou serena. Mas, em mar aberto, na escuridão da noite, baixou a peste. As gengivas dos grumetes incharam, os dentes caíram como pérolas que, de repente, soltassem de um rico diadema. O primeiro a morrer foi o imediato e, depois mais três marujos. O capitão perdeu apenas dois molares.
Sabe-se que o Capitão é o que conduz o barco, o motor, a nau, a canoa, é o chefe de uma viagem a conduziro leitor a formular hipóteses sobre os diferentes aspectos textuais para, por fim, fazer uma análisecrítica literária hermenêutica com cuidado nos resultados.
De tal sorte, a representação do personagem capitão pode-se vê-la  acorrentada a conteúdos muito próximos  de outros que se recorda, se repete, desdobra-se naturalmente sobre si, e faz renascer impressões quase idênticas,  engendrada na imaginação daabertura do livro com o substantivo que nomina o texto, O Capitão.
Faz-se necessária, como é necessária é, a incorporação da cultura popular na voz marginalizada do narrador, nessecontexto dos estudos literários já que o tema é bastante alusivo à memória que está alerta.
O Capitão era um homem gordo, baixo, que usava sempre uma peruca branca, de franjas para esconder a calvície.Embriagado, e sem condições, comandava uma nau à deriva, desgovernada entregue aos grumetes sem orientação, numa tempestade que põe em risco a vida de todos. É um Comandante,sem dar conta dos acontecimentos, um velho lobo, bêbedo de rum e vinho que havia ingerido em demasia; embriagado rolando da cama para o chão, conforme a tempestade. 
Esse é o primeiro quadro apresentado para o leitor, um evento insólito a se destacar, um narrador desempenhando função de personagem secundário da ação relatada,na condição de testemunha dos acontecimentos. Daí se dizer que o“leitor não está, portanto, preso a uma cenografia compacta, mas numa negociaçãoentre cenografia  de  contador de histórias mundano e a cena genérica do fabulista tradicional” (MAINGUENEAU,2006,255),que sai da herança cultural amazônica, sob o signo de associação de ideias,  situada nessa espécie de curto-circuito entre memória e imaginação.
Esta narrativa apresenta a tendência desintegradora do ser,porém, de concretização histórica dos fatos da vida relacionada a sócio-histórico-mito. A propósito, FOUCAULT(2002,109) assegura-nos com a seguinte síntese:“as palavras receberam a tarefa e o poder de representar o pensamento”.  Daí que, o tema da viagem é antigo, desde Homero, que mostrou-nos a capacidade de navegar pela literatura e falar da experiência de sair e chegar a mundos diversos e dominar o outro, seja pela força física, seja pelo poder do diálogo.
Porém, Homero, em suas narrativas, apresentou homens de açõessuperiores, diferente de Linhares que, neste conto,  percebe-se que a unidade de ação fica a cargo dos anti-heróis, homens de práticas inferiores e, o conflito, fica afetado nesta representação pelo lado terrível  das cenas da desgraçada humanidade, um esforço dramático de representação do passado a que Ricoeur, em sua obra,A metáfora viva,  concebe a este caráter como um “esforço de reanimar um velho tema sobre a base de uma nova análise da linguagem”. (2005,123)
A desintegração do sujeito está na redução predicativa dasrelações, das ações   comportamentais, e de como a linguagem funciona sobre a base dessa dissimetria entre essas funções  utilizadas pelo narrador:E navegou serena. Mas, em mar aberto, na escuridão da noite, baixou a peste. As gengivas dos grumetes como pérolas que, de repente,soltassem de um rico diademaincharam, os dentes caíram. O primeiro a morrer foi o imediato e, depois mais três marujos. O capitãoperdeuapenasdois molares.
Nessa descrição definidade “o capitão perdeuapenas dois molares”, estácolocada a função edificante já que representam o “imediato e os três marujos”, homens de força (e a relação do valor que tem na boca os dentes  molares e, a perda destes, ocasiona distúrbios na arcada bucal) e/ou(o desajuste  da viagem).
“O molar é o mais complexo dos dentes na maioria dos mamíferos. Situa-se na parte posterior da mandíbula. A sua função primária é triturar alimentos, o que lhe vale o nome, que significa "mó" ou "pedra de moinho". Como são dentes que possuem várias pontas em sua área de contato com os alimentos, são ditos multicúspides. Toda a pessoa que perde precocemente este dente certamente terá algum transtorno no futuro”.
Buscou-se a explicação sobre o valor dos dentes mandibulares para inferir na representação da perda dos personagens textuais,e, obviamente,nessa perda se (des)ajustano trabalho da semelhança (digamos estreito), porém, lógicos do ato de continuar a navegar, fazer andar em águas a memória, a narrativa. Sabe-se que o estreito na combinação das aparências (homens/dentes) é umapelo  para “a relação entre dinâmica do enunciado e seu efeito no sentido da palavra de conotação” que  na visão ricoeuriana  a define como
metáfora viva e produtora de imagem isotópica e semântica, para tornar possível a leitura uniforme do discurso. Não se deve eliminar nenhum sinal para a interpretação,que seja mais um componente da  própria produção para que  as análises dos detalhes tornam-se mais notáveis. (2005,281/3)
A aventura continua no quesito linguagem, uma prova de que este conto é uma perfeita artilharia verbal.  A magia das palavraspermite-nos   dizer que tudo foi previsto para fazer a diferença ilusória de que os signos linguísticos realmente assemelhar-se-ão à verdade.  Vale acrescentar queserecorreu à pesquisa dicionarizada para entender as palavras, e compreender o vocabulário náutico na leiturae entender o texto. Destacou-se algumas joias raras do “rico diadema” para dara ideia das propostas verbais no texto. Escolheu-se alguns vocábulos mostrando a erudição do autor, quepara escrever um conto, é necessário pesquisar,o que dá credibilidade aodiscurso do autor.
Ex: piaparas( é o nome vulgar de Leporinuselongatus um peixe com escamas; corpo alongado, um pouco alto e fusiforme); bufido ( voz de animal que bufa); barlavento; sota-vento (Barlavento e sotavento são termos náuticos que se referem ao lado da embarcação de onde e para onde sopra o vento, respectivamente; velame(conjunto das velas de uma embarcação);jusante (Oriundo do latim jusum, é um substantivo feminino que também significa "para o lado da foz"; bujarronaé o nome de uma vela utilizada em veleiros no mastro principal; esta vela ao ser "soprada" por um vento moderado é projetada para a frente; etc,.
Como se percebe são muitos os signos e não cessam de proliferar como seconstata nesta outra apresentação.
O terceiro conto é“O navio” que entrara silencioso, de madrugada, deslizando suavemente pelo canal e fundeou, majestoso, bem no meio do lago, todo iluminado e ornamentado, de mastro a mastro, com bandeirolas multicoloridas. Este navio chega para mudar a vida da cidade por dois meses de festa até a noite do temporal que removeu as pedras do lugar como blocos de espuma. Passado o fato, o navio havia sumido, sem que ninguém notasse.
As imagens textuais são alegoriasde sentido mítico-político-social. Os vários mitos transfiguram-se nessa narrativa potencializados pelo imaginário oficial decodificado: o navio que chega na calmaria noturna. Depois, ilumina-see seduz toda a cidade, esse é o ambiente físico em que se insurge o objeto e se estabelece por dois meses, mudando a rotina da cidade pacata, despertando interesses diversos e até financeiro para desgosto de Frei Otoni,o padre da cidade.
O interessante nesta narrativa são as revelações da representação da vida política da cidade. Uma cidade sem nada, mas tem um Prefeito inquieto, um Delegado que não justifica pela placidez do povo, um Governador que não sabe se na cidade existe uma Capitania dos Portos e, de político, só pisava mesmo naquela terra o deputado Cardeira que, de quatro em quatro anos, se elegiacom os votos dos compadres e amigos. Interessante, também, é perceberpolítico considerado  somente o Deputado, deixando de fora o próprio Governador.
Com um olhar bem articulado o narrador mostra os aspectos mais simpáticos da cidade, fotografa os instantâneos dos que habitam este universo ficcional. Apresenta as figuras que compõem os quadros alegres /degradantes da cidade. E, como toda cidade que se preza, têm prostitutas, as famosas mulheres que dão vida e alegria nas praças,têm os parasitas sociais representados na figura dos cachaceiros e,  a meninada que faz a festa na rua com a chegada do navio. E, nesserearranjo das ações transitivas / intransitivas / expositivas confere ao relato uma estrutura de conto dentro do conto, “o reconto”.
A peripéciaestá presente na chegada e na saída do navio, surge e desaparece como o nada. Por encanto, encanta e desencanta o povo, é a imaginação refletida e confusa, na grande e ininterrupta confirmação da identidade cultural como apresenta FOUCAULT (2002,221):
numcontínuum que aparece na abertura deixada entre a descrição e a disposição, é a continuidade da natureza, que dá, sem dúvida, que dá à memória a ocasião de exercer quando uma representação, por alguma identidade confusa e mal percebida, evoca uma outra e permite aplicar o signo arbitrário o nome comum: Navio.
A nosso ver, éconvincente considerar o fantástico eufórico  por retomar dos valores ideológicos dos contos relatados pelos caboclos da Amazônia, a reconfiguração da própria vida ribeirinha que se faz nas narrativas para colocar o leitor diante do mistério, do inexplicável, refazendo com  alegria, a transformação da vida sociocultural e financeira das gentes pela chegada inusitada do navio, e depois, a volta da vida pacata com o sumiço do  mesmo, mexendo com a racionalidade humana. Neste conto, vê-se um quadro visível de variáveis no gênero ora posto em estudo, o ato de contar. Certamente conhecido, semelhante, mas nunca é o mesmo, mas que permite relacionar-se com o outro conjunto nas identidades visíveis.
Todos os elementos insólitos de que se constitui a narrativa cumprem a função precípua de instaurar a dúvida, objeto de açãomovente, e faz com que a hesitação permaneça para além de seu momento. Duvida-se do acontecido, questionam-se as causas e mantém-se indefinido o desfecho, desprovido de explicação conclusiva.
O conto é uma estrutura narrativa que dá a certeza de que algo vai ocorrer e que será intenso, mas, geralmente, o final, fica quase sempre em suspense, deixando para o leitor a surpresa de ter encontrado personagem, acontecimento, emoção,situação, unidade de tempo, de lugar e de ação. Daí ser necessário que o contista tenhaoriginalidade e concisão para induzir o leitor a navegar sem naufragar, encantar-se nesses tocantes mitos e lendas recuperados com astucia e maestria no uso das palavras.
O texto tem sentido e depende do contexto sócio-histórico-cultural em que está localizado. Estaria o autor a intertextualizar com os antigos enfoques, do que é interno na linguagem oral, criando uma ambivalência textual pela semelhança de umtexto que remete a outro(s)texto(s)?. “Neste conto parece que voltamos a cair mais uma vez em um problema formal,composicional, mas aqui, mais uma vez a verdadeira forma é apenas um espelhamento artístico generalizador de fatos legítimos e recorrentes da vida” (LUKÁCS, 2011, 161) documentada, arquivada na biblioteca de história da cultura.
Ainda na esfera da intertextualidade ou “residualidade”, na acepção mais moderna,temos o texto “Pentateuco” que sai do catálogoa História para a estória, reapresentado com uma história e linguagem“exótica”. Obviamente o autor tratou de “construir a ideia com uma linguagem segunda a partir da linguagem primeira”, FOUCAULT (2002,221): da Bíblia.
No grego,Pentateuco quer dizer "os cinco rolos" ou os primeiros cinco livros da Bíblia Hebraica, atribuído a Moisés . Entre os judeus é chamado de Torá, uma palavra da língua hebraica com significado associado ao ensinamento, instrução, ou especialmente Lei. É o que vamos perceber no texto.
Sem nominar “Moisés”, percebe-se o grande libertador dos hebreus, tido por eles como seu principal legislador e mais importante líder religioso daquele tempo (bíblico) e que se inscrevenessa narrativa. De acordo com a Bíblia e a tradição judaico-cristã, Moisés realizou diversos prodígios após uma Epifania. Libertou o povo judeu da escravidão no Antigo Egito, tendo instituído a Páscoa Judaica. Depois guiou seu povo através de umêxodo pelo deserto durante quarenta anos, que se iniciou através da famosa passagem em que abre o Mar Vermelho, para possibilitar a travessia segura dos judeus.
Neste fragmento abaixo, ver-se-á o autor dando um recuo no retorno da origem no modo de ser do homem e, a reflexãoa que ele se dirige estáligada à historicidade e a religiosidade, contudo, não é do mesmo modo que o homem tem relação  com sua origem. Vejamos, então, pelo olhar da teoria da derivação, como as palavras estão liberadas nessa representação:
Jagodes fora. Não admitiremos descredenciados. Janereiros serão bem vindos. Não aceitaremos, também, os indócoros. Homem que ainda usa jarreteira não merece nossa simpatia. Fecalóides idem, idem. Languentos, da mesma forma.[...]
Iniciaremos nossa caminhada em breves dias. Teremos pela frente penhascais, rios lenglíferos e todos usaremos o laudel. Nosso caminho poderá ser lotulento. Por isso todos deverão estar preparados. Não aceitaremos defecções. Figurilhas, coloquem-se na retaguarda. Antes todos visitemnossa hoploteca e escolham as armas.[...] não se deixem contaminar pela beleza do decastilo. A penumbra será um fator do nosso lado.
O rei é um graticídio e golelheiro. Sua presença será anunciada por um helican eseguido de um heptafone. Sobre o balcão estarão flâmulas com inscrições hieráticas.[...]
Os terrenos por onde passaremos poderão ser dedinosos ou contra-dedinosos. Isso não importa. Temos de evitar é o decremento do pessoal. A indebilidade de nossa história é que conta.
Haveremos de atingir a terra prometida. E quando chegarmos lá, a primeira coisa que faremos é um jantarão, um banquete opíparo. Escolheremos o sacerdote mais infecundo para fazer o sermão de chegada, a fim de não estragar nossa alegria.
Então criaremos as castas. Os senhores de posses, para se distinguirem dos comuns, usarão uma catênula presa à escarcela. Os comuns usarão chapéu amarelo, os catetês se distinguirão pelas roupas vistosas, pois eles são indispensáveis. Nosso palácio será feito de cipós à entrada. E todos serão efêndis. Nosso governo será aberto. Teremos então fundado a democracia, um governo humanal.[...].
Cada um no seu lugar. Os ricos serão ricos e os pobres serão pobres. Eis ai o fundamento da democracia. É elegíaco.
O que se evidencia é a duplicidade constitutivaem mostrar alguma coisa fora do comum.Haveremos de atingir a terra prometida. E quando chegarmos lá, a primeira coisa que faremos é um jantarão, um banquete opíparo. Escolheremos o sacerdote mais infecundo para fazer o sermão de chegada, a fim de não estragar nossa alegria.
Não aceitaremos, também, os indócoros. Homem que ainda usa jarreteira não merece nossa simpatia. Fecalóides idem, idem. Languentos, da mesma forma.
Embora o texto tenha referência ao texto sagrado, o que se percebe é uma mancha cega, na verdade não existe nada de religioso, o que há de se perceber é a ironia no quadro que se apresenta do fracasso ao sistema político do Brasildesde o começo que,a propósito, pode-se destacar nesta afirmação  bem convincente: Cada um no seu lugar. Os ricos serão ricos e os pobres serão pobres. Eis ai o fundamento da democracia. É elegíaco.
“Como todo texto que advém de um discurso constituinte, a obra tematiza, ora de maneira oblíqua, ora de maneira direta, suas próprias condições de duplicidade e de possibilidade”. MAINGUENEAU (2006,291).
Na chegada dos viajantes o narrador personagem diz: Escolheremos o sacerdote mais infecundo para fazer o sermão de chegada, a fim de não estragar nossa alegria, numa clara evidência de que a“duplicidade” está constitutiva no ato de mostrar alguma coisa fora do comum, e identificar a “mancha cega” que  torna possível a obra”. MAINGUENEAU (2006,291). Na verdade só se presta atenção ao texto, quando o texto nos chama a atenção, daí paraque se perceba um texto sobre o outro texto, uma imagem sobre a outra imagem e, a primeira sempre serve de tronco para a segunda, a segunda para a terceira e assim os textos se refazem na nova  linguagem se reverberando para uma nova historicidade como se vê em  Escolheremos o sacerdote mais infecundo para fazer o sermão de chegada, a fim de não estragar nossa alegria, numa clara referência ao tempo de Caminha.
Mais uma vez a surpresa com a linguagem textual,também  preciosa e curiosa mantém certa relação com o domínio subordinado ao aspecto proposto. Apresenta-se reflexiva e, percebe-se uma procura transcendentalbrotando do coração  silencioso como sons  de uma trombeta que anuncia a grande viagem em busca de fazer falar, de trazer a luz e cantar para maior justeza o maravilhoso poder da literatura. FIORIM (2008) diz-nos que “as línguas e a linguagem inscrevem-se num espaço real, num tempo histórico e são faladas por seres situados nesse espaço e nesse tempo”, e, por essa linguagem,os mitos se nutrem e as histórias se renovam e fortificam a cultura do homem em sociedade.
No entanto, esse jogo de correspondências não nos deve iludir. Sabe-se que as mentiras ai ajustadas saíram de uma verdade absoluta (bíblia),mas, é no possível jeito de construir o inusitado que autoriza a leituraa ser divertida. É, na tentativa de agradar aos jovens leitores que,o autor, institivamente,recorre ao artifício invadindo outras dimensões ao transformar o texto de outrora em moderno.
Recontar a história de “Moisés” pelo ângulo e pelo olhar simulado de um narrador que recoloca o pé no já lido,que o imaginado ou a mistura das duas coisas se oferece em percepções, e, na arquitetura do texto antigo, pela linguagem moderna, não deixa margem de dúvida da leitura do escritor.
A literatura é sempre reinvenção e, o léxico é funcional, criado pela atmosfera do texto,serve para realçar as preciosidades arqueológicas extraídas da narrativa e,poderá ser objeto de análise, mas, aqui,  não é essa a nossa intenção, porém apresentamos algumas pérolas do discurso.
Jagodes,(zero à esquerda; pessoa sem noção);Janereiros(sem definição)indócoros(sem definição);jarreteira (uma ordem de cavalariabritânica, a mais antiga da Inglaterra), fecalóides (diz-se de vômito que cheira a matérias fecais); languentos (enfermiço, achacadiço, doentio);figurilhas(peq.figura);lotulento(sem definição);hoploteca (Coleção de armas. Lugar onde se guardam armas.);hospitálias(sem definição);decastilo (monumento com dez colunas na fachada.);graticídio (sem definição);golelheiro(mexeriqueiro); facúndia (que tem facilidade para falar em público); pentapticos (Tábua na qual os romanos escreviam com um estilo; códex pugilar);hipocassia(sem definição);dedinosos(sem definição);opíparo (Lauto, abundante, magnífico, suntuoso.);infacundo, catênula (Traço em forma de cadeia);efêndis (Antigo título, entre os turcos, dos funcionários civis, dos ministros religiosos e dos sábios.) infactível, catilinárias (Acusação enérgica e eloquente (com o emprego do título, Catilinárias, de orações de Cícero contra Catilina).).

São muitos os textos com nomes de pessoas:
Alfredo é um desses e tem um narrador confessional com fama defacadista e sacador de vales, que aprendi nos atribulados quarenta anos em que me tornei um contorcionista das letras e um lambão da notícia.Pode-se dizer que nesse contexto de diálogo há uma velada ironia quanto às duas profissões do referido autor: professor e locutor. Eric Landowski apud Fiorim diz que a enunciaçãoé o “ato pelo qual o sujeito faz ser o sentido”, e o enunciado, “o objeto cujo sentido faz ser o sujeito. Fazer ser, é a própria definição do ato”(2008,31),talvez aí esteja enraizada a mais importante opção filosófica de uma reflexão na coexistência com o outro.
No diálogo há uma comparação das seis faces do jogo de dados com os mistérios da vida: Dizem que o homem é produto do meio e se issoé verdade, eu sou um produto completo e acabado. Nesses quarenta anos de profissão, sempre me disseram que era um formador de opinião, mas nunca me levaram a sério, embora, algumas vezes, estivesse absolutamente certo.Essas ações elaboradas constituem forças e marcam o discurso na principal afirmação do sujeito no universo ficcional. Essa característica é uma função de atestaçãofalada pela relação afetiva, moral ou intelectual do narrador com a história, num simples testemunho de reiteração de informações, graus de lembranças e de sentimentos despertados nesses  episódios.
E, para fechar a obra,Três estórias de Dama, tem um personagem que vagueia nos três contos, um sujeito que atende pelo nome de DORCA e abre a primeira das três narrativas. Depois, vem Eurípedes e Mestre Felisberto.
No primeiro conto,
Dorca é apresentado meio bicho meio gente, nascido por aqui mesmo, nesse mundão de mato. Um eremita, nunca conheceu mulher,acredita piamente  em Deus, aliás, ele tem medo de Deus, o padre disse que ele pode ser castigado por qualquer pecado que cometer.[...] Agora já estamos velhos... Se o senhor tiver tempo, faça uma visita ao Dorca. [...] ele vive ali, no primeiro sítio, à esquerda depois da primeira curva do rio descendo. Boa noite, passe bem.
No segundo conto tem Eurípedes:
É verdade, não duvide. Eurípedes era um negro como eu nunca vi. Ninguém alcançava o ombro dele. Coisa de dois metros e tal.[...]. É verdade tudo o que lhe contei. Pode pôr fé. Pergunte ao Dorca, se o senhor passar pelo sítio dele. O Dorca não me deixa mentir. Boa noite, passe bem.
E, o terceiro conto tem
Mestre Felisberto era um homem muito estranho. Alto, uns dois metros. Tinha umas mãos enormes, sendo que não possuía a primeira falange do dedo indicador da mão direita. [...]Um dia catando ouriços, quando uma cascavel deu o bote e picou o dedo indicador da mão direita. [...] Botou o dedo sobre um tronco caído e com o terçado de cortar ouriços, torou a falange, [...] ele tocava rabeca como ninguém, contavam-se histórias a respeito dele. Contavam-se históriasa respeito dele. Dizia-se que Mestre Felisberto virava Curupira, porque tinha nos braços, nas pernas, no peito e nas costas, um matagal espesso de pelos. Mestre Felisberto era um verdadeiro artista. Pergunte ao Dorca. Ele não me deixa mentir. O senhor sabe onde ele mora. Boa noite, passe bem.

            Nessas três narrativastemos“narradores heterodiegético  situado em nível extradiegético, isso favorece a confusão  entre narrador e autor”. São muitos os referentes que se pode anotar como estratégia do conto: O narrador conta e, se o ouvinte/leitor não acreditar, pergunte ao Dorca. O peso da instituição discursiva está na expressão;Boa noite, passe bemé a retórica do homem simples, diz a verdade sem artifícios de abuso de poder. “O artista assume-se como denunciante, que tem o dever de dizer a verdade mesmo quando ela vai de encontro ao consenso”(AMOSSY,2008,133). Define-se por esse aspecto, a existência do narrador-personagem que combinacom a prática do contaracompanhadada encenação enunciativa. 
 Na Amazônia, é comum os contadores de “causos” quererem ser creditados na história contada, percebendo adesconfiançada fé no relato, instiga o ouvinte;“pergunte ao Dorca”. Neste referente está a aceitação pela comunidade de como o narrador é o Senhor da lei e da verdade, até porque “mentira tem perna curta”, velho ditado por essas bandas.A Hermenêutica Filosófica visa recuperar, para além da obra, o terreno em que ela finca suas raízes e que lhe confere sentido através da“consciência criadora, tradição, temperamento dos povos ou arraigamento de uma língua em uma nação”.
O verdadeiro caráter de criação universal está na narração dos fatos para as comunidades ouvintes e,trazer os mortos a visitarem em esferas outras de narração   para os mais novatos, é  ensinar-lhes  um pouco da vida pela cultura dos antigos. Toda essa estrutura mítica de contar os fatos utilizando-se de forças mágicas e ou sobrenatural,com o personagem Dorca,incorpora  a potência do absoluto homem da Amazônia, vivente em seu espaço de origem, recuperando   o caráter   primitivo da identidade nacional  no narrador de causos e,  no Dorca,“que não me deixa mentir”, surge, então,  o elemento de fronteira da memória que reflete e assegura o patrimônio da cultura. Neste ínfimo discurso, é possível resgatar o direito de falar a cultura dos antepassados, pois, a reversibilidade do ato do reconto nas literaturas, reproduzem efeitos de real, um (re)fazer de obra, um (re)fazer de mundo mobilizado em novos paradigmas sociológicos do saber.
Ainda sobre os fatos narrativos, o resgate cultural em Linhares, faz-nos voltar os olhos para a nossa arte primeira que é contar.  Contar a cor local no vasto matiz de coisas que extraímos da vida no dia a dia da Amazônia. Se não acreditamos, perguntemos ao Dorca, ele mora ali, no primeiro sítio. O ali éreferente de lugar muito comum em nós interioranos. Adquire status de dêitico, uma redução de informação que fica codificada na extensão do alongamento do lábio inferior da pessoa que pronuncia o “ali”. Obviamente, o falante tem de pressupor que as respectivas informações, já estão à disposição de seu interlocutor.“Pergunte ao Dorca. Ele não me deixa mentir”.

E, o navio com suas estórias, dá uma pausa para ouvirmos o tocadorde charamela:

Um pouquinho dosignificado de  charamelado autor aos leitores. Do latim “calamellus”, do francês “chalamelle”- atualmente “chalameau”. Antigo instrumento de sopro, feito de cana, dotado de uma palheta metida em cápsula ou,barrilete onde se soprava com força, como nas buzinas (o ar fazia vibrar a palheta simples depois de percorrer um tubo cilíndrico, posto acima do corpo sonoro do ); da família das flautas e de timbre estridente e áspero; precursor do oboé e da clarineta – havia charamelas de três dimensões:  bastarda, média e charamelinha.[...]. O mesmo que charanga (orquestra mais ou menos desafinada). É nesse sentido o título do livro.
Vivemos muito apoiados nos nossos sentidos, sobretudo, no da visão, é ele que nos garante a existência do mundo, como se o mundo não estivesse cheio de ilusões e imagens enganadoras. Platão menosprezava a função dos sentidos no processo de conhecimento, porque osconsiderava enganadores, na medida em que a realidade que se nos mostrava era apenas uma cópia do verdadeiro mundo, só podia ser alcançar pela razão. Já o seu discípulo Aristóteles, divergiu do mestre ao conceder uma importância empírica aos sentidos, porta de entrada fundamental de todo o conhecimento, antes de chegar à razão.
            Estamos definitivamente na sociedade da imagem e do som. Contudo, também se verifica o processo oposto, o desejo de verbalizar um som, e de descrever por palavras uma cena, a vontade de fazer crítica artística, de expressar na oralidade ou na escrita um pôr-do-sol, um quadro magnífico que nos surpreendeu, um filme que nos arrebatou, uma escultura que nos encheu os olhos e uma música que nos encheu os ouvidos.A esta tentativa da literatura a de fixar, em palavras, imagens ou outros objetos artísticos, configurando-se a eles, através de estratégias técnico-compositivas e estilísticas próprias do sistema semiótico em causa, dá-se o nome de ékphrasis.
O termo ékphrasis provém do grego e é, pela sua abrangência conceptual atual e pelas transformações semânticas que foi sofrendo desde a Grécia antiga, difícil de definir e de delimitar.  Durante muitos séculos vigorou o famoso aforismo de Horácio, ut picturapoiesis…, e as relações ekphrásticas cingiam-se exclusivamente à intertextualidade entre poesia e a representação ideográfica ou pictórica, que incluía a pintura e de alguma forma, a escultura.
Mais tarde, com o apogeu da música, também a poesia teve pretensões de aimitar. Um dos exemplos mais bem sucedidos foi o movimento literário simbolista que compunha os seus poemas com andamentos musicais e aproveitamentos sonoros das palavras que remetiam imediatamente para o universo musical.
Assim, vê-se na obra de Linhares que ela se insere neste universo ekphrásticocom contos que representam uma jogatina de dados e, em outros, sonatas e cantatas delirantes,apelos alegóricos com motivosdo sofrimento expressos nos tocadores textuais. Os dados são cubos de várias faces, o que sepressupõe assim ser o livro e os textos, uma jogada do mestrena arte de contar a seus aficionados  leitores, ou as teclas do piano, dedilhado angustiadamente a música sofrida, ou, as cordas dos instrumentos musicaiscomo violões e cavaquinhos que dedilhando uma Música estranha, desconhecida do comum dos vizinhos que se estorvavam com o som agudo do instrumento. Vamos encontrar argumentação emP. Zumthor, apud Maingueneaudizendo que  a:

Escrita torna possível jogos de máscaras,uma dissimulação, senão uma mentira, mas também propõe, ao menos ficticiamente, uma globalidade textual. O desempenho oralimplica uma travessia no discurso pela memória, sempre aleatória e enganosa, de certo modo desviante; daí advém as variações, as modulações improvisadas, a recriação do já dito.

Por certo nos contos d’O tocador de charamelasãomuitosos que tocam instrumentos, entre esses o personagem

Zacarias, que nem ao menos podia ser considerado amador, embora tocasse emborapor música. Possuía uma coleção de velhas partiturasque exercitava nas suas tardes de folga de funcionário público de meio expediente. Música estranha, desconhecida do comum dos vizinhos que se estorvavam com o som agudo do instrumento, tanto que, umas três ou quatro vezes, arrebentaram-lhe as vidraças, para espanto e raiva da patroa[...], o som da charamela não harmonizava, em determinados números, com violões e cavaquinhos.[...] ... ensaiava outras músicas, escolhidas entre valsas e chorinhos preferidos pelos Inveterados do Copo e do Ritmo, com os quais se reunia no Chopp de Ouro todas às noites de sábado, estas eram de mais agrado dos vizinhos ignorantes. Mesmo assim, nem sempre podia integrar o regional, porque o som da charamela não harmonizava, em determinados números, com os violões e cavaquinhos.

E, emoutro conto;
E Doña Morales tocava piano. As mãos, brancas e leves, feriam as teclas com delicadeza, retirando sons quase inaudíveis.

O conto Mura; o mais insólito de estranha riqueza natural como se pode conferir no próprio texto:
Aruê,carámirió;
Cadê metotire?
‘Stá no mato,
Debaixo do pau,
Auê...
A cantiga sincrética é melancólica e ecoa na noite de um silêncio táctil. Em frente ao barranco o manto negro do lago reflete, em crespos que a brisa levanta a espaços, a luz fugaz da lua mortiça. Noite após noite o espera. Há-de surgir da escuridão, singrando as águas da canoa lépida, impulsionada pelos braços poderosos. [...] A cantiga é uma invocação. O vestido molhado pelo sereno, os cabelosescorridos no rosto, mas os olhos, fixos na  escuridão, são poços  secos, ardentes. Tantos anos de silencioso convívio, o relacionamento na velha barraca protegida pelos cajueiros, sem necessidade de palavras_ uma e outra, em ocasiões raras. Bastava o olhar, o gesto, a vontade pressentida. O sofrer é resignado.
[...] ao amanhecer a cantiga é uma prece e o sangue forma crostas negras nas mãos estropiadas. Olhos no lago, agora dourado em fundo negro.

Neste último conto julgo que, as cambiantes semânticas atuais do termo, permite esta classificação com a autonomização progressiva, movida pelas sonoridades, isto confere uma submissãomaior à narratividade ékphrásticas em  sua aplicação desde a época da retórica de Homero. Os versos iniciais marcam o inicio da triste cantiga, é como a entrada do Aedo grego no papel de compor e cantar, acompanhado de seu instrumento e, o Aedo, nesta obra, temum papel itinerante, ou seja, vaide leitor em leitor buscar umpúblico para recitar suas obras, esta é a lógica interna da obra.
Este texto é a aproximação da oralidade e da cantilena ao texto escrito.
(LUKÁCS, 2011,160) diz-nos que “essa intenção é realizada com meio artístico bem distinto e, como é sempre o caso na arte, esconde um conteúdo muito essencial nessa diferença de forma”.A música, por todos os textos,  há de ser capturada pelo leitor que percebe, que a mesma, é parte integrante e deve ser sentida. (MAINGUENEAU,2006,222) confirma que:

No acontecimento sonoroconstitui a performance oral tornando positiva a associação entre texto e contexto, uma apreensão espacial da obra. Sabe-se que a oralidade continua a ser a norma da leitura, e ainda é frequente considerar o escrito como suporte de uma reprodução oral.

Teresa Carvalho diz-nos que a “possibilidade de resguardar a literatura do contato com as demais artes, reservando para si um “estado de pureza” parece – e sê-lo-á, seguramente – insustentável”.  Daí que, o considerável interesse pelo oral e pelo escrito surpreende-nos nesta proposta feita pelo autor;a de apresentar formas discursivas em sua obra e mostra o caráter embrionário de como a literatura se constitui: uma finalidade; uma continuidade; um modo de inscrição na temporalidade; armazenamento; memorização; reflexão; um suporte de transmissão da cultura para inquietar a vida de muitos leitores. Todas essas perspectivas coordenadas estão particularmente bem definidas nos contos, como para mostrar as cenas englobantes de épocas, cenografia, procedimento, mensagem que servem de meditação. O poeta ou o escritor é a linguagem original dos Deuses.


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