Francisca de Lourdes Souza Louro
Dra. em Poética e Hemenêutica. UC.
Era a única herdade que recebera do pai,que
por sua vez recebera do avô
e este do bisavô
e este
de toda uma geração.
(O tocador de
charamela (p.37))
RESUMO
As
duas obras de Erasmo Linhares estão estruturadas em formato de contos. O contar
(do latim computare) uma história, em princípio, oralmente, evoluiu para o
registro das estórias por escrito que, posteriormente, com essa criação,
percebeu-se e estudou-se a figura do narrador que assumiu esta função: a de
contador-criador-escritor de contos, afirmando, então, o seu caráter literário.
O contar nem sempre tem referência ao acontecido, não tem compromisso com o
real e, tal como o tamanho, literatura não é documento, é literatura. Oconto
literário se apresenta como novo florescimento artístico na concepção histórica
da realidade. Como o romance, apresenta as mesmas relações de estrutura, lógico
que com uma curta história. Muito já foi formulado e discutido em favor da arte
de contar. Vladimir Proppestudou as várias formas para determinar as constantes
e variantes dos contos, comparando suas estruturas e sistemas. Diz o referido
autor que antes de qualquer coisa que se pensasse sobre essa natureza de
literatura seria necessário entendê-las como histórias fantásticas, histórias
tomadas da vida cotidiana e histórias de animais, e ou enquadrar o mesmo conto,
em mais de um tipo destes três. Não usaremos de classificação neste estudo, a
referência a Propp é somente para esclareceros estudos em favor dessa estrutura
narrativa chamada conto.
Palavras-chave: Conto,
histórias, cultura, construção de sentidos.
ABSTRACT:
Erasmo Linhares’ two works are organized in the format
of a tale. Telling a story (Latin: computare), being an oral act in principle,
developed to the written register of the stories. Subsequently, as the tales
were being put into writing, the figure of the narrator who accept this role
became apparent and started do be studied, i. e., the tale
teller-creator-writer. This fact was responsible for stating his literary
character. Telling has not always had as reference real events, since it does
not compromise with the real. As in the case of the size, literature is
literature; “size does not matter”. Literary tale presents itself as a new
artistic development inside historical opinion of reality. Such as a novel
does, literary tale presents the same relations of structure, logically with a
short story. Much has already been written and discussed in favor of the art of
telling. Vladimir Propp looked at various ways of determining the constants and
variants of a tale, comparing its structure and systems. According to Propp, first
and foremost it is considered about this nature of literature, there is a need
to know them as fantastical stories, stories which were extracted from everyday
life, as well as stories about animals. There is still a need of framing tales
into more than one of these three types. We will not use such classification in
this study. References to Propp were used only to clarify studies in favor of
these narrative structures called tale.
Keyword: Tale.
Stories.Culture.Construction of meaning.
Um
pouco sobre o autor extraído de seus livros.
Erasmo
Linhares é amazonense de Coari, nascido em 02/06/1934. Foi alfabetizado por sua
mãe e depois estudou em Grupos Escolares nas primeiras informações e, depois
cursou o ginasialno Colégio Amazonense
D. Pedro II. Iniciou-se no jornalismo aos 15 anos de idade e foi
radialista na antiga Rádio Rio Mar. Bacharelou-se em Comunicação Social pela
extinta Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da U.A. Logo após sua
diplomação, recebeu convite para lecionar no mesmo curso, sendo barrado por
implicações com o Regime Militar de 1964. No entanto, em 1978 alcançou a
docência, através de concurso público lecionando no Curso de Comunicação Social
por quase 20 anos. Foi pós-graduado,
pela UA/INPA em Geografia da Amazônia.
Erasmo foi membro do conselho Fiscal do Sindicato dos
Jornalistas Profissionais do Amazonas; foi membro do Clube da Madrugada e da
União Brasileira de Escritores. Recebeu o diploma de Amigo da Marinha,ganhou o
troféu de Personalidade das Comunicações, por iniciativa da Caixa Econômica. O
Sindicato dos Radialistas deu-lhe o título de Microfone de Ouro, como também,
foi merecedor do Baiacu de Ouro, prêmios que lhe deram destaque e consagraçãono
cenário radialístico da cidade de Manaus. Não se deve deixar de mencionar o
destaque que deu à base educacional como conselheiro do Movimento de Educação
de base- MEB-MOBRAL.
Começo
de uma viagem do imaginário Amazônico.
Na
apresentaçãoda obra,O Navio e outras
estórias, Flávio Ferreira Farias, faz uma assertiva deque “não há como
deixar sem importância a linguagem utilizada nesta bela obra. Leve,
descompromissada com o linear arredio e introspectivo da erudição mal-entendida”.
É
por essa linhada erudição que discorre o autor ao descrever a mal-entendidaalma
do caboclo. O viés deste trabalho é
perceber como estão articuladas as ideias e a composição dos significados na
condensação simbólica dos mesmos. A imagem é condiçãohumana: Épica, dramática
ou lírica. Disso resulta, contudo, que os conflitos dramáticos se apresentam a
nós a partir de histórias sociais, ou que alguém já contou. O recurso linguístico de palavrório farto e
consistenteserá mostrado, apenas, na composição da estrutura narrativa como
fonte de conhecimento que o autor passa ao leitor.
Este
empreendimentoestá compostoem 24 contos e, pela proposta que nomina o livro, “O
Navio”, logo se julga que a arte é bem próxima das narrativas dos viajantes e/ou
dos pescadores, gente que vive a contar grandes (des)aventuras, além de se
afirmar numa concepção de subjetividade e se apoiar em um conjunto de ideias de
oralidade e de escritores anteriores. Os textos literários, obviamente, são
alimentados pela memória da sociedade comum, isso mostra que podem
sertransformados incessantemente pela “linguagem não sóas relaçõesque as palavras
entretêm consigo mesmas, utilizando-as além de seus sentidos estritos e além da
lógica do discurso usual, um texto móvel, capaz mesmo de não conter sentido
definitivo ou incontestável”(D’ONOFRIO:2001;14).
Sabe-se
que o conto é uma narrativa curta e, normalmente, tem um final insólito, ou melhor,
nada que agrade o leitor que é levado a deduzir na parcela de sentido do mundo o
que a narrativa encerra, “daí advém”, talvez,o “mal- entendido”. No entanto, sob
o ponto de vista hermenêutico filosófico, perceber quenem a diminuição dos
elementos estruturais tiram-lhe o valor estético de sepoderconferir ao conto uma grande densidade dramática nascorrespondentes imagens relatadas do passado, e, sendo possível lembrar Ricoeur dizendo-nos,
que se deve“perceber como a memória trabalha a palavra “reconhecimento” tão
rica em ramificações no plano lexicográfico”, o que a torna familiar, homérico.
O
tema da viagem tem sempre essa referência secular, marcante no arquivo da
memória, pelas ramificações que empreende em novas propostas do ato de narrar.“A
fenomenologia reata assim com uma distinção familiar à língua grega entre mneme e anámnesis consagrada pelo
notável escrito de Aristóteles cujo título latino tornou-se familiar: De memoria etreminiscentia”
(RICOEUR,2006,125), em que sepode percebera reduplicação do problema, mostrado, na diversidade dos traços exposto
em cada narrador, a arte de contar o tema da viagem.
Inicialmente tem“O Capitão”, texto que constitui a
partida desse conjunto deviagem de aventuras de comunicação verbal chamada Conto.
Nesta narrativa acontece, bem a propósito, a viagem de um saqueador Capitão da
Provença, homem que dava vexame para seus comandados. Brait (2010)diz que “a
fronteira dos sentidos, a boa literatura é uma janela aberta para o mundo,
graças à sensibilidade do escritor atento à vida, à arte que reinventa”. O leitor
entra numa cena englobante, o mar revolto de tormentosa tempestade e,não sendo
suficiente, os grumetes e o imediato são mostradoscom doenças de caírem-lhes os
dentes. Uma réplica dos antigos nautas do mundo europeu. Vejamos um fragmento
do que se fala:
Uma
nau
que aporta de arcas vazias, o convés sem nada que pudesse despertar interesse.
O rei não quis recebê-lo. O monarca queria ouro e prata. Não se interessava por
heróis e muito menos pelas aventuras do mar dos mundos, nem mesmo de novos
continentes que poderiam ser seus. Só queria a corte rica, faustosa, pomposa,
farta, um monumento sob cujos pés a Europa se pusesse de joelhos.
O
capitão era um homem gordo, baixo, que usava sempre uma peruca branca, de
franjas para esconder a calvície. Era um piscívoro.[...] Mas o velho lobo,
bêbedo de rum e vinho que havia ingerido em demasia,[...]. O capitão acordou e
subiu ao tombadilho, ainda cambaleante. Viu os marujos no trabalho de consertar
as velas destruídas pelo vento. A tacaca escorria pelas axilas peludas dos
velhos marinheiros, labutando sob sol escaldante que sobreveio à
tempestade.[...] Os ventos propícios empurraram a caravela para a frente, rumo
do Norte. E navegou serena. Mas, em mar aberto, na escuridão da noite, baixou a
peste. As gengivas dos grumetes incharam, os dentes caíram como pérolas que, de
repente, soltassem de um rico diadema. O primeiro a morrer foi o imediato e,
depois mais três marujos. O capitão perdeu apenas dois molares.
Sabe-se
que o Capitão é o que conduz o barco, o motor, a nau, a canoa, é o chefe de uma
viagem a conduziro leitor a formular hipóteses sobre os diferentes aspectos
textuais para, por fim, fazer uma análisecrítica literária hermenêutica com
cuidado nos resultados.
De
tal sorte, a representação do personagem capitão pode-se vê-la acorrentada a conteúdos muito próximos de outros que se recorda, se repete,
desdobra-se naturalmente sobre si, e faz renascer impressões quase idênticas, engendrada na imaginação daabertura do livro
com o substantivo que nomina o texto, O
Capitão.
Faz-se
necessária, como é necessária é, a incorporação da cultura popular na voz marginalizada
do narrador, nessecontexto dos estudos literários já que o tema é bastante
alusivo à memória que está alerta.
O
Capitão era um homem gordo, baixo, que
usava sempre uma peruca branca, de franjas para esconder a calvície.Embriagado, e sem condições,
comandava uma nau à deriva, desgovernada entregue aos grumetes sem orientação, numa
tempestade que põe em risco a vida de todos. É um Comandante,sem dar conta dos
acontecimentos, um velho lobo, bêbedo de
rum e vinho que havia ingerido em demasia; embriagado rolando da cama para o
chão, conforme a tempestade.
Esse
é o primeiro quadro apresentado para o leitor, um evento insólito a se
destacar, um narrador desempenhando função de personagem secundário da ação
relatada,na condição de testemunha dos acontecimentos. Daí se dizer que o“leitor
não está, portanto, preso a uma cenografia compacta, mas numa negociaçãoentre
cenografia de contador de histórias mundano e a cena genérica
do fabulista tradicional” (MAINGUENEAU,2006,255),que sai da herança cultural
amazônica, sob o signo de associação de ideias,
situada nessa espécie de curto-circuito entre memória e imaginação.
Esta
narrativa apresenta a tendência desintegradora do ser,porém, de concretização
histórica dos fatos da vida relacionada a sócio-histórico-mito. A propósito,
FOUCAULT(2002,109) assegura-nos com a seguinte síntese:“as palavras receberam a
tarefa e o poder de representar o pensamento”.
Daí que, o tema da viagem é antigo, desde Homero, que mostrou-nos a
capacidade de navegar pela literatura e falar da experiência de sair e chegar a
mundos diversos e dominar o outro, seja pela força física, seja pelo poder do
diálogo.
Porém,
Homero, em suas narrativas, apresentou homens de açõessuperiores, diferente de
Linhares que, neste conto, percebe-se
que a unidade de ação fica a cargo dos anti-heróis, homens de práticas
inferiores e, o conflito, fica afetado nesta representação pelo lado terrível das cenas da desgraçada humanidade, um esforço
dramático de representação do passado a que Ricoeur, em sua obra,A metáfora viva, concebe a este caráter como um “esforço de
reanimar um velho tema sobre a base de uma nova análise da linguagem”.
(2005,123)
A
desintegração do sujeito está na redução predicativa dasrelações, das ações comportamentais, e de como a linguagem
funciona sobre a base dessa dissimetria entre essas funções utilizadas pelo narrador:E navegou serena. Mas, em mar aberto,
na escuridão da noite, baixou a peste. As gengivas dos grumetes como pérolas que, de repente,soltassem de um rico diademaincharam, os
dentes caíram. O primeiro a morrer foi o imediato e,
depois mais três marujos. O capitãoperdeuapenasdois molares.
Nessa
descrição definidade “o capitão perdeuapenas
dois molares”, estácolocada a função edificante já que representam o “imediato
e os três marujos”, homens de força (e a relação do valor que tem na boca os
dentes molares e, a perda destes,
ocasiona distúrbios na arcada bucal) e/ou(o desajuste da viagem).
“O molar é o mais complexo dos dentes na
maioria dos mamíferos.
Situa-se na parte posterior da mandíbula.
A sua função primária é triturar alimentos, o que lhe vale o nome, que
significa "mó" ou "pedra de moinho". Como são dentes que
possuem várias pontas em sua área de contato com os alimentos, são ditos multicúspides.
Toda a pessoa que perde precocemente este dente certamente terá algum
transtorno no futuro”.
Buscou-se
a explicação sobre o valor dos dentes mandibulares para inferir na
representação da perda dos personagens textuais,e, obviamente,nessa perda se (des)ajustano
trabalho da semelhança (digamos estreito), porém, lógicos do ato de continuar a
navegar, fazer andar em águas a memória, a narrativa. Sabe-se que o estreito na
combinação das aparências (homens/dentes) é umapelo para “a relação entre dinâmica do enunciado e
seu efeito no sentido da palavra de conotação” que na visão ricoeuriana a define como
metáfora viva e produtora de imagem isotópica
e semântica, para tornar possível a leitura uniforme do discurso. Não se deve
eliminar nenhum sinal para a interpretação,que seja mais um componente da própria produção para que as análises dos detalhes tornam-se mais
notáveis. (2005,281/3)
A
aventura continua no quesito linguagem, uma prova de que este conto é uma
perfeita artilharia verbal. A magia das
palavraspermite-nos dizer que tudo foi
previsto para fazer a diferença ilusória de que os signos linguísticos
realmente assemelhar-se-ão à verdade.
Vale acrescentar queserecorreu à pesquisa dicionarizada para entender as
palavras, e compreender o vocabulário náutico na leiturae entender o texto. Destacou-se
algumas joias raras do “rico diadema” para dara ideia das propostas verbais no
texto. Escolheu-se alguns vocábulos mostrando a erudição do autor, quepara
escrever um conto, é necessário pesquisar,o que dá credibilidade aodiscurso do autor.
Ex: piaparas( é o nome vulgar de Leporinuselongatus
um peixe com escamas; corpo alongado,
um pouco alto e fusiforme);
bufido ( voz de animal que bufa); barlavento;
sota-vento (Barlavento e sotavento são termos náuticos que se referem ao lado da embarcação de onde e para onde
sopra o vento, respectivamente; velame(conjunto das velas de uma embarcação);jusante (Oriundo do latim jusum, é um substantivo
feminino que também significa "para o lado da foz";
bujarrona ( é o nome de uma vela utilizada em veleiros
no mastro principal; esta vela ao ser "soprada" por um vento moderado
é projetada para a frente; etc,.
Como
se percebe são muitos os signos e não cessam de proliferar como seconstata nesta
outra apresentação.
O
terceiro conto é“O navio” que entrara silencioso, de madrugada, deslizando suavemente pelo canal e
fundeou, majestoso, bem no meio do lago, todo iluminado e ornamentado, de
mastro a mastro, com bandeirolas multicoloridas. Este navio chega para mudar a
vida da cidade por dois meses de festa até a noite do temporal que removeu as
pedras do lugar como blocos de espuma. Passado o fato, o navio havia sumido, sem que ninguém notasse.
As
imagens textuais são alegoriasde sentido mítico-político-social. Os vários
mitos transfiguram-se nessa narrativa potencializados pelo imaginário oficial decodificado:
o navio que chega na calmaria noturna. Depois, ilumina-see seduz toda a cidade,
esse é o ambiente físico em que se insurge o objeto e se estabelece por dois
meses, mudando a rotina da cidade pacata, despertando interesses diversos e até
financeiro para desgosto de Frei Otoni,o padre da cidade.
O
interessante nesta narrativa são as revelações da representação da vida
política da cidade. Uma cidade sem nada, mas tem um Prefeito inquieto, um Delegado
que não justifica pela placidez do povo, um Governador que não sabe se na cidade existe uma Capitania dos Portos e, de político, só pisava mesmo naquela terra o
deputado Cardeira que, de quatro em quatro anos, se elegiacom os votos dos
compadres e amigos. Interessante, também, é perceberpolítico considerado somente o Deputado, deixando de fora o próprio
Governador.
Com
um olhar bem articulado o narrador mostra os aspectos mais simpáticos da
cidade, fotografa os instantâneos dos que habitam este universo ficcional. Apresenta
as figuras que compõem os quadros alegres /degradantes da cidade. E, como toda
cidade que se preza, têm prostitutas, as famosas mulheres que dão vida e
alegria nas praças,têm os parasitas sociais representados na figura dos
cachaceiros e, a meninada que faz a
festa na rua com a chegada do navio. E, nesserearranjo das ações transitivas /
intransitivas / expositivas confere ao relato uma estrutura de conto dentro do
conto, “o reconto”.
A
peripéciaestá presente na chegada e na saída do navio, surge e desaparece como o
nada. Por encanto, encanta e desencanta o povo, é a imaginação refletida e
confusa, na grande e ininterrupta confirmação da identidade cultural como
apresenta FOUCAULT (2002,221):
numcontínuum que aparece na abertura deixada entre a
descrição e a disposição, é a continuidade da natureza, que dá, sem dúvida, que
dá à memória a ocasião de exercer quando uma representação, por alguma
identidade confusa e mal percebida, evoca uma outra e permite aplicar o signo
arbitrário o nome comum: Navio.
A
nosso ver, éconvincente considerar o fantástico eufórico por retomar dos valores ideológicos dos contos
relatados pelos caboclos da Amazônia, a reconfiguração da própria vida
ribeirinha que se faz nas narrativas para colocar o leitor diante do mistério, do
inexplicável, refazendo com alegria, a
transformação da vida sociocultural e financeira das gentes pela chegada
inusitada do navio, e depois, a volta da vida pacata com o sumiço do mesmo, mexendo com a racionalidade humana. Neste
conto, vê-se um quadro visível de variáveis no gênero ora posto em estudo, o
ato de contar. Certamente conhecido, semelhante, mas nunca é o mesmo, mas que
permite relacionar-se com o outro conjunto nas identidades visíveis.
Todos
os elementos insólitos de que se constitui a narrativa cumprem a função
precípua de instaurar a dúvida, objeto de açãomovente, e faz com que a
hesitação permaneça para além de seu momento. Duvida-se do acontecido,
questionam-se as causas e mantém-se indefinido o desfecho, desprovido de
explicação conclusiva.
O
conto é uma estrutura narrativa que dá a certeza de que algo vai ocorrer e que
será intenso, mas, geralmente, o final, fica quase sempre em suspense, deixando
para o leitor a surpresa de ter encontrado personagem, acontecimento,
emoção,situação, unidade de tempo, de lugar e de ação. Daí ser necessário que o
contista tenhaoriginalidade e concisão para induzir o leitor a navegar sem
naufragar, encantar-se nesses tocantes mitos e lendas recuperados com astucia e
maestria no uso das palavras.
O
texto tem sentido e depende do contexto sócio-histórico-cultural em que está
localizado. Estaria o autor a intertextualizar com os antigos enfoques, do que
é interno na linguagem oral, criando uma ambivalência textual pela semelhança
de umtexto que remete a outro(s)texto(s)?. “Neste conto parece que voltamos a
cair mais uma vez em um problema formal,composicional, mas aqui, mais uma vez a
verdadeira forma é apenas um espelhamento artístico generalizador de fatos legítimos
e recorrentes da vida” (LUKÁCS, 2011, 161)
documentada, arquivada na biblioteca de história da cultura.
Ainda
na esfera da intertextualidade ou “residualidade”, na acepção mais moderna,temos
o texto “Pentateuco” que sai do catálogoa História para a estória, reapresentado
com uma história e linguagem“exótica”. Obviamente o autor tratou de “construir
a ideia com uma linguagem segunda a partir da linguagem primeira”, FOUCAULT
(2002,221): da Bíblia.
No grego,Pentateuco quer dizer "os cinco
rolos" ou os primeiros cinco livros da Bíblia Hebraica, atribuído a Moisés .
Entre os judeus é chamado de Torá, uma palavra da língua hebraica com
significado associado ao ensinamento, instrução, ou especialmente Lei. É o
que vamos perceber no texto.
Sem nominar “Moisés”, percebe-se o grande
libertador dos hebreus, tido por eles como seu principal legislador e mais
importante líder religioso daquele tempo (bíblico) e que se inscrevenessa
narrativa. De acordo com a Bíblia e a tradição judaico-cristã, Moisés
realizou diversos prodígios após uma Epifania.
Libertou o povo judeu da escravidão no Antigo Egito,
tendo instituído a Páscoa
Judaica. Depois guiou seu povo através de umêxodo pelo deserto durante quarenta anos,
que se iniciou através da famosa passagem em que abre o Mar Vermelho,
para possibilitar a travessia segura dos judeus.
Neste
fragmento abaixo, ver-se-á o autor dando um recuo no retorno da origem no modo
de ser do homem e, a reflexãoa que ele se dirige estáligada à historicidade e a
religiosidade, contudo, não é do mesmo modo que o homem tem relação com sua origem. Vejamos, então, pelo olhar da
teoria da derivação, como as palavras estão liberadas nessa representação:
Jagodes fora. Não admitiremos descredenciados. Janereiros serão bem
vindos. Não aceitaremos, também, os indócoros. Homem que ainda usa jarreteira
não merece nossa simpatia. Fecalóides idem, idem. Languentos, da mesma forma.[...]
Iniciaremos nossa caminhada em breves dias. Teremos pela frente
penhascais, rios lenglíferos e todos usaremos o laudel. Nosso caminho poderá
ser lotulento. Por isso todos deverão estar preparados. Não aceitaremos
defecções. Figurilhas, coloquem-se na retaguarda. Antes todos visitemnossa hoploteca
e escolham as armas.[...] não se deixem contaminar pela beleza do decastilo. A
penumbra será um fator do nosso lado.
O rei é um graticídio e golelheiro. Sua presença será anunciada por um
helican eseguido de um heptafone. Sobre o balcão estarão flâmulas com
inscrições hieráticas.[...]
Os terrenos por onde passaremos poderão ser dedinosos ou contra-dedinosos.
Isso não importa. Temos de evitar é o decremento do pessoal. A indebilidade de
nossa história é que conta.
Haveremos de atingir a terra prometida. E quando chegarmos lá, a primeira
coisa que faremos é um jantarão, um banquete opíparo. Escolheremos o sacerdote
mais infecundo para fazer o sermão de chegada, a fim de não estragar nossa
alegria.
Então criaremos as castas. Os senhores de posses, para se distinguirem
dos comuns, usarão uma catênula presa à escarcela. Os comuns usarão chapéu
amarelo, os catetês se distinguirão pelas roupas vistosas, pois eles são
indispensáveis. Nosso palácio será feito de cipós à entrada. E todos serão
efêndis. Nosso governo será aberto. Teremos então fundado a democracia, um
governo humanal.[...].
Cada um no seu lugar. Os ricos serão ricos e os pobres serão pobres. Eis
ai o fundamento da democracia. É elegíaco.
O que se evidencia é a duplicidade
constitutivaem mostrar alguma coisa fora do comum.Haveremos de atingir a terra prometida. E quando chegarmos lá, a
primeira coisa que faremos é um jantarão, um banquete opíparo. Escolheremos o
sacerdote mais infecundo para fazer o sermão de chegada, a fim de não estragar
nossa alegria.
Não aceitaremos, também, os indócoros. Homem que ainda usa jarreteira não
merece nossa simpatia. Fecalóides idem, idem. Languentos, da mesma forma.
Embora
o texto tenha referência ao texto sagrado, o que se percebe é uma mancha cega,
na verdade não existe nada de religioso, o que há de se perceber é a ironia no
quadro que se apresenta do fracasso ao sistema político do Brasildesde o começo
que,a propósito, pode-se destacar nesta afirmação bem convincente: Cada um no seu lugar. Os ricos serão ricos e os pobres
serão pobres. Eis ai o fundamento da democracia. É elegíaco.
“Como
todo texto que advém de um discurso constituinte, a obra tematiza, ora de
maneira oblíqua, ora de maneira direta, suas próprias condições de duplicidade
e de possibilidade”. MAINGUENEAU (2006,291).
Na
chegada dos viajantes o narrador personagem diz: Escolheremos o sacerdote mais infecundo para fazer o sermão de chegada,
a fim de não estragar nossa alegria, numa
clara evidência de que a“duplicidade” está constitutiva no ato de mostrar
alguma coisa fora do comum, e identificar a “mancha cega” que torna possível a obra”. MAINGUENEAU
(2006,291). Na verdade só se presta atenção ao texto, quando o texto nos chama
a atenção, daí paraque se perceba um texto sobre o outro texto, uma imagem
sobre a outra imagem e, a primeira sempre serve de tronco para a segunda, a
segunda para a terceira e assim os textos se refazem na nova linguagem se reverberando para uma nova historicidade como se vê
em Escolheremos o sacerdote mais infecundo para fazer o sermão de chegada,
a fim de não estragar nossa alegria, numa clara referência ao tempo de
Caminha.
Mais
uma vez a surpresa com a linguagem textual,também preciosa e curiosa mantém certa relação com o
domínio subordinado ao aspecto proposto. Apresenta-se reflexiva e, percebe-se
uma procura transcendentalbrotando do coração silencioso como sons de uma trombeta que anuncia a grande viagem em
busca de fazer falar, de trazer a luz e cantar para maior justeza o maravilhoso
poder da literatura. FIORIM (2008) diz-nos que “as línguas e a linguagem
inscrevem-se num espaço real, num tempo histórico e são faladas por seres
situados nesse espaço e nesse tempo”,
e, por essa linguagem,os mitos se nutrem e as histórias se renovam e fortificam
a cultura do homem em sociedade.
No
entanto, esse jogo de correspondências não nos deve iludir. Sabe-se que as
mentiras ai ajustadas saíram de uma verdade absoluta (bíblia),mas, é no
possível jeito de construir o inusitado que autoriza a leituraa ser divertida.
É, na tentativa de agradar aos jovens leitores que,o autor, institivamente,recorre
ao artifício invadindo outras dimensões ao transformar o texto de outrora em
moderno.
Recontar
a história de “Moisés” pelo ângulo e pelo olhar simulado de um narrador que
recoloca o pé no já lido,que o imaginado ou a mistura das duas coisas se
oferece em percepções, e, na arquitetura do texto antigo, pela linguagem
moderna, não deixa margem de dúvida da leitura do escritor.
A
literatura é sempre reinvenção e, o léxico é funcional, criado pela atmosfera do
texto,serve para realçar as preciosidades
arqueológicas extraídas da narrativa e,poderá ser objeto de análise, mas,
aqui, não é essa a nossa intenção, porém
apresentamos algumas pérolas do discurso.
Jagodes,(zero à esquerda; pessoa sem noção);Janereiros(sem definição)indócoros(sem
definição);jarreteira (uma ordem de cavalariabritânica, a mais antiga da Inglaterra), fecalóides (diz-se de vômito que cheira a matérias fecais); languentos (enfermiço, achacadiço, doentio);figurilhas(peq.figura);lotulento(sem
definição);hoploteca (Coleção de armas. Lugar onde se guardam armas.);hospitálias(sem definição);decastilo (monumento
com dez colunas na fachada.);graticídio
(sem definição);golelheiro(mexeriqueiro); facúndia (que tem facilidade para falar
em público); pentapticos (Tábua na qual os
romanos escreviam com um estilo; códex pugilar);hipocassia(sem definição);dedinosos(sem
definição);opíparo (Lauto, abundante, magnífico, suntuoso.);infacundo, catênula (Traço em forma de cadeia);efêndis (Antigo título, entre os
turcos, dos funcionários civis, dos ministros religiosos e dos sábios.) infactível, catilinárias (Acusação enérgica e eloquente (com o emprego do título,
Catilinárias, de orações de Cícero contra Catilina).).
São
muitos os textos com nomes de pessoas:
Alfredo
é um desses e tem um narrador confessional com fama defacadista
e sacador de vales, que aprendi nos atribulados quarenta anos em que me tornei
um contorcionista das letras e um lambão da notícia.Pode-se
dizer que nesse contexto de diálogo há uma velada ironia quanto às duas
profissões do referido autor: professor e locutor. Eric Landowski apud Fiorim
diz que a enunciaçãoé o “ato pelo qual o sujeito faz ser o sentido”, e o
enunciado, “o objeto cujo sentido faz ser o sujeito. Fazer ser, é a própria
definição do ato”(2008,31),talvez aí esteja enraizada a mais importante opção
filosófica de uma reflexão na coexistência com o outro.
No
diálogo há uma comparação das seis faces do jogo de dados com os mistérios da
vida: Dizem que o homem é produto do meio e se issoé
verdade, eu sou um produto completo e acabado. Nesses quarenta anos de
profissão, sempre me disseram que era um formador de opinião, mas nunca me
levaram a sério, embora, algumas vezes, estivesse absolutamente certo.Essas ações
elaboradas constituem forças e marcam o discurso na principal afirmação do
sujeito no universo ficcional. Essa característica é uma função de
atestaçãofalada pela relação afetiva, moral ou intelectual do narrador com a
história, num simples testemunho de reiteração de informações, graus de lembranças
e de sentimentos despertados nesses episódios.
E,
para fechar a obra,Três estórias de Dama,
tem um personagem que vagueia nos três contos, um sujeito que atende pelo nome
de DORCA e abre a primeira das três narrativas. Depois, vem Eurípedes e Mestre
Felisberto.
No primeiro conto,
Dorca
é apresentado meio bicho meio gente, nascido por aqui mesmo, nesse mundão de
mato. Um eremita, nunca conheceu mulher,acredita piamente em Deus, aliás, ele tem medo de Deus, o padre
disse que ele pode ser castigado por qualquer pecado que cometer.[...] Agora já
estamos velhos... Se o senhor tiver tempo, faça uma visita ao Dorca. [...] ele
vive ali, no primeiro sítio, à esquerda depois da primeira curva do rio
descendo. Boa noite, passe bem.
No segundo conto tem Eurípedes:
É
verdade, não duvide. Eurípedes era um negro como eu nunca vi. Ninguém alcançava
o ombro dele. Coisa de dois metros e tal.[...]. É verdade tudo o que lhe
contei. Pode pôr fé. Pergunte ao Dorca, se o senhor passar pelo sítio dele. O
Dorca não me deixa mentir. Boa noite, passe bem.
E, o terceiro conto tem
Mestre
Felisberto era um homem muito estranho. Alto, uns dois metros. Tinha umas mãos
enormes, sendo que não possuía a primeira falange do dedo indicador da mão direita.
[...]Um dia catando ouriços, quando uma cascavel deu o bote e picou o dedo
indicador da mão direita. [...] Botou o dedo sobre um tronco caído e com o
terçado de cortar ouriços, torou a falange, [...] ele tocava rabeca como ninguém,
contavam-se histórias a respeito dele. Contavam-se históriasa respeito dele.
Dizia-se que Mestre Felisberto virava Curupira, porque tinha nos braços, nas
pernas, no peito e nas costas, um matagal espesso de pelos. Mestre Felisberto
era um verdadeiro artista. Pergunte ao Dorca. Ele não me deixa mentir. O senhor
sabe onde ele mora. Boa noite, passe bem.
Nessas três narrativastemos“narradores
heterodiegético situado em nível
extradiegético, isso favorece a confusão
entre narrador e autor”. São muitos os referentes que se pode anotar
como estratégia do conto: O narrador conta e, se o ouvinte/leitor não acreditar,
pergunte ao Dorca. O peso da instituição discursiva está na expressão;Boa
noite, passe bemé a retórica do homem simples, diz a
verdade sem artifícios de abuso de poder. “O artista assume-se como
denunciante, que tem o dever de dizer a verdade mesmo quando ela vai de
encontro ao consenso”(AMOSSY,2008,133). Define-se por esse aspecto, a
existência do narrador-personagem que combinacom a prática do contaracompanhadada
encenação enunciativa.
Na Amazônia, é comum os contadores de “causos”
quererem ser creditados na história contada, percebendo adesconfiançada fé no
relato, instiga o ouvinte;“pergunte ao Dorca”. Neste referente está a aceitação
pela comunidade de como o narrador é o Senhor da lei e da verdade, até porque “mentira
tem perna curta”, velho ditado por essas bandas.A Hermenêutica Filosófica visa
recuperar, para além da obra, o terreno em que ela finca suas raízes e que lhe
confere sentido através da“consciência criadora, tradição, temperamento dos
povos ou arraigamento de uma língua em uma nação”.
O
verdadeiro caráter de criação universal está na narração dos fatos para as
comunidades ouvintes e,trazer os mortos a visitarem em esferas outras de
narração para os mais novatos, é ensinar-lhes
um pouco da vida pela cultura dos antigos. Toda essa estrutura mítica de
contar os fatos utilizando-se de forças mágicas e ou sobrenatural,com o
personagem Dorca,incorpora a potência do
absoluto homem da Amazônia, vivente em seu espaço de origem, recuperando o caráter
primitivo da identidade nacional no narrador de causos e, no Dorca,“que não me deixa mentir”, surge,
então, o elemento de fronteira da
memória que reflete e assegura o patrimônio da cultura. Neste ínfimo discurso,
é possível resgatar o direito de falar a cultura dos antepassados, pois, a
reversibilidade do ato do reconto nas literaturas, reproduzem efeitos de real,
um (re)fazer de obra, um (re)fazer de mundo mobilizado em novos paradigmas
sociológicos do saber.
Ainda
sobre os fatos narrativos, o resgate cultural em Linhares, faz-nos voltar os
olhos para a nossa arte primeira que é contar.
Contar a cor local no vasto matiz de coisas que extraímos da vida no dia
a dia da Amazônia. Se não acreditamos, perguntemos ao Dorca,
ele mora ali, no primeiro sítio.
O ali éreferente de lugar muito comum em nós interioranos. Adquire status de dêitico,
uma redução de informação que fica codificada na extensão do alongamento do
lábio inferior da pessoa que pronuncia o “ali”. Obviamente, o falante tem de
pressupor que as respectivas informações, já estão à disposição de seu
interlocutor.“Pergunte ao Dorca. Ele não me deixa mentir”.
E,
o navio com suas estórias, dá uma pausa para ouvirmos o tocadorde charamela:
Um pouquinho dosignificado de
charamelado autor aos leitores. Do latim “calamellus”, do francês
“chalamelle”- atualmente “chalameau”. Antigo instrumento de sopro, feito de
cana, dotado de uma palheta metida em cápsula ou,barrilete onde se soprava com
força, como nas buzinas (o ar fazia vibrar a palheta simples depois de
percorrer um tubo cilíndrico, posto acima do corpo sonoro do ); da família das
flautas e de timbre estridente e áspero; precursor do oboé e da clarineta –
havia charamelas de três dimensões:
bastarda, média e charamelinha.[...]. O mesmo que charanga (orquestra
mais ou menos desafinada). É nesse sentido o título do livro.
Vivemos muito apoiados nos nossos sentidos, sobretudo, no da
visão, é ele que nos garante a existência do mundo, como se o mundo não
estivesse cheio de ilusões e imagens enganadoras. Platão menosprezava a função
dos sentidos no processo de conhecimento, porque osconsiderava enganadores, na medida
em que a realidade que se nos mostrava era apenas uma cópia do verdadeiro
mundo, só podia ser alcançar pela razão. Já o seu discípulo Aristóteles,
divergiu do mestre ao conceder uma importância empírica aos sentidos, porta de
entrada fundamental de todo o conhecimento, antes de chegar à razão.
Estamos
definitivamente na sociedade da imagem e do som. Contudo, também se verifica o
processo oposto, o desejo de verbalizar um som, e de descrever por palavras uma
cena, a vontade de fazer crítica artística, de expressar na oralidade ou na
escrita um pôr-do-sol, um quadro magnífico que nos surpreendeu, um filme que
nos arrebatou, uma escultura que nos encheu os olhos e uma música que nos
encheu os ouvidos.A esta tentativa da literatura a de fixar, em palavras,
imagens ou outros objetos artísticos, configurando-se a eles, através de
estratégias técnico-compositivas e estilísticas próprias do sistema semiótico
em causa, dá-se o nome de ékphrasis.
O termo ékphrasis provém do grego e é, pela sua abrangência
conceptual atual e pelas transformações semânticas que foi sofrendo desde a
Grécia antiga, difícil de definir e de delimitar. Durante muitos séculos vigorou o famoso
aforismo de Horácio, ut picturapoiesis…, e as relações ekphrásticas
cingiam-se exclusivamente à intertextualidade entre poesia e a representação
ideográfica ou pictórica, que incluía a pintura e de alguma forma, a escultura.
Mais tarde, com o apogeu da música, também a poesia teve
pretensões de aimitar. Um dos exemplos mais bem sucedidos foi o movimento
literário simbolista que compunha os seus poemas com andamentos musicais e
aproveitamentos sonoros das palavras que remetiam imediatamente para o universo
musical.
Assim, vê-se na obra de Linhares que ela se insere neste
universo ekphrásticocom contos que representam uma jogatina de dados e, em
outros, sonatas e cantatas delirantes,apelos alegóricos com motivosdo
sofrimento expressos nos tocadores textuais. Os dados são cubos de várias
faces, o que sepressupõe assim ser o livro e os textos, uma jogada do mestrena
arte de contar a seus aficionados leitores, ou as teclas do piano, dedilhado
angustiadamente a música sofrida, ou, as cordas dos instrumentos musicaiscomo violões
e cavaquinhos que dedilhando uma Música estranha, desconhecida do comum
dos vizinhos que se estorvavam com o som agudo do instrumento. Vamos
encontrar argumentação emP. Zumthor, apud Maingueneaudizendo que a:
Escrita torna possível jogos de máscaras,uma
dissimulação, senão uma mentira, mas também propõe, ao menos ficticiamente, uma
globalidade textual. O desempenho oralimplica uma travessia no discurso pela
memória, sempre aleatória e enganosa, de certo modo desviante; daí advém as
variações, as modulações improvisadas, a recriação do já dito.
Por certo nos contos d’O tocador de charamelasãomuitosos
que tocam instrumentos, entre esses o personagem
Zacarias, que nem ao menos podia ser considerado amador,
embora tocasse emborapor música. Possuía uma coleção de velhas partiturasque
exercitava nas suas tardes de folga de funcionário público de meio expediente.
Música estranha, desconhecida do comum dos vizinhos que se estorvavam com o som
agudo do instrumento, tanto que, umas três ou quatro vezes, arrebentaram-lhe as
vidraças, para espanto e raiva da patroa[...], o som da charamela não
harmonizava, em determinados números, com violões e cavaquinhos.[...] ...
ensaiava outras músicas, escolhidas entre valsas e chorinhos preferidos pelos
Inveterados do Copo e do Ritmo, com os quais se reunia no Chopp de Ouro todas
às noites de sábado, estas eram de mais agrado dos vizinhos ignorantes. Mesmo
assim, nem sempre podia integrar o regional, porque o som da charamela não
harmonizava, em determinados números, com os violões e cavaquinhos.
E, emoutro conto;
E Doña Morales tocava piano. As mãos, brancas e leves,
feriam as teclas com delicadeza, retirando sons quase inaudíveis.
O conto
Mura; o mais insólito de estranha
riqueza natural como se pode conferir no próprio texto:
Aruê,carámirió;
Cadê
metotire?
‘Stá no
mato,
Debaixo do
pau,
Auê...
A cantiga sincrética é melancólica e ecoa na noite de
um silêncio táctil. Em frente ao barranco o manto negro do lago reflete, em
crespos que a brisa levanta a espaços, a luz fugaz da lua mortiça. Noite após
noite o espera. Há-de surgir da escuridão, singrando as águas da canoa lépida,
impulsionada pelos braços poderosos. [...] A cantiga é uma invocação. O vestido
molhado pelo sereno, os cabelosescorridos no rosto, mas os olhos, fixos na escuridão, são poços secos, ardentes. Tantos anos de silencioso
convívio, o relacionamento na velha barraca protegida pelos cajueiros, sem
necessidade de palavras_ uma e outra, em ocasiões raras. Bastava o olhar, o
gesto, a vontade pressentida. O sofrer é resignado.
[...] ao
amanhecer a cantiga é uma prece e o sangue forma crostas negras nas mãos
estropiadas. Olhos no lago, agora dourado em fundo negro.
Neste último conto julgo que, as cambiantes semânticas
atuais do termo, permite esta classificação com a autonomização progressiva,
movida pelas sonoridades, isto confere uma submissãomaior à narratividade ékphrásticas
em sua aplicação desde a época da retórica
de Homero. Os versos iniciais marcam o inicio da triste cantiga, é como a
entrada do Aedo grego no papel de compor e cantar, acompanhado de seu
instrumento e, o Aedo, nesta obra, temum papel itinerante, ou seja, vaide
leitor em leitor buscar umpúblico para recitar suas obras, esta é a lógica
interna da obra.
Este texto é a aproximação da oralidade e da
cantilena ao texto escrito.
(LUKÁCS,
2011,160) diz-nos que “essa intenção é realizada com meio artístico bem
distinto e, como é sempre o caso na arte, esconde um conteúdo muito essencial
nessa diferença de forma”.A música,
por todos os textos, há de ser capturada
pelo leitor que percebe, que a mesma, é parte integrante e deve ser sentida.
(MAINGUENEAU,2006,222) confirma que:
No acontecimento sonoroconstitui a performance oral
tornando positiva a associação entre texto e contexto, uma apreensão espacial
da obra. Sabe-se que a oralidade continua a ser a norma da leitura, e ainda é
frequente considerar o escrito como suporte de uma reprodução oral.
Teresa Carvalho diz-nos
que a
“possibilidade de resguardar a literatura do contato com as demais artes,
reservando para si um “estado de pureza” parece – e sê-lo-á, seguramente –
insustentável”. Daí que, o considerável
interesse pelo oral e pelo escrito surpreende-nos nesta proposta feita pelo
autor;a de apresentar formas discursivas em sua obra e mostra o caráter
embrionário de como a literatura se constitui: uma finalidade; uma
continuidade; um modo de inscrição na temporalidade; armazenamento;
memorização; reflexão; um suporte de transmissão da cultura para inquietar a
vida de muitos leitores. Todas essas perspectivas coordenadas estão
particularmente bem definidas nos contos, como para mostrar as cenas
englobantes de épocas, cenografia, procedimento, mensagem que servem de meditação.
O poeta ou o escritor é a linguagem original dos Deuses.
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