Pedro
Aurélio Tenório Sobral
Mestrando em Literatura - UFPB
Resumo
Com este artigo, objetivamos analisar o
romance Não Verás País Nenhum, de Ignácio
de Loyola Brandão (1981), à luz do contexto histórico no qual estava inserido:
o regime militar brasileiro que perdurou, segundo a versão mais aceita, de 1964
a 1985. Para tanto, nos guiamos por alguns historiadores que avaliaram o
período e o confrontamos ao texto narrativo de Loyola Brandão, demarcando
aproximações e distanciamentos entre a narrativa ficcional e os fatos aceitos
pela historiografia nacional. Além disso, classificamos esse livro como distópico e o comparamos com outras
obras importantes e que leem um futuro sombrio: 1984, de George Orwell e Admirável
Mundo Novo, de Aldous Huxley.
Resumen
Con este
artículo, objetivamos analizar la novela Não
Verás País Nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão (1981) delante del contexto
histórico en lo cual estaba puesto: el régimen militar brasileño que perduró,
en su mirada más acepta, de 1964-1985. Para eso, nos guiamos por algunos
historiadores que evaluaron el período y lo comparamos al texto ficcional de
Loyola Brandão, marcando aproximaciones y distanciamientos entre la narrativa
ficcional y los hechos oficiales de la historiografía nacional. Además,
ubicamos ese libro como distópico y
lo comparamos a otras obras importantes y que miran para un futuro sombrío: 1984, de George Orwell y Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.
Palavras-chave: Regime
Militar, Ignácio de Loyola Brandão, distopia
Palabras-clave:
Régimen Militar, Ignácio de
Loyola Brandão, distopia
Apresentação
Este artigo pretende analisar o romance Não Verás País Nenhum (1981), do
escritor Ignácio de Loyola Brandão. O livro narra a vida do paulista Souza em
um futuro incerto de um Brasil governado por militares.
Na contracapa da 21ª edição de Não Verás País Nenhum, o editor
interpreta o livro de Loyola Brandão como sendo uma “utopia” (palavra que vem
do grego e que significa “lugar nenhum”, ou “algo inatingível”). Através do
senso comum, utopia passou a ser configurada como “um sonho distante”,
“irrealizável”. Na biografia de Thomas More, presente na edição de A Utopia (2001), escrito originalmente
no início do século XVI, Karl Mannheim (apud MORE 2001: p. 118) detalhada a
obra:
Descreve
um estado imaginário situado numa ilha, uma Inglaterra ideal, governada por uma
assembleia eleita, cuja principal incumbência consiste em evitar os
desequilíbrios sociais e garantir a igualdade dos cidadãos. A ordem social em Utopia baseia-se na família e prevê o
trabalho de todos, exceto de um pequeno grupo de homens que tem por tarefa o
estudo.
Foi com base na obra de More que surgiu
a teoria dos socialistas utópicos, no século XIX, pensada por Robert Owen e
Saint-Simon. Estes objetivavam a criação de uma sociedade ideal, isenta de
desigualdade entre as pessoas, baseada na ilha Utopia, de More – um lugar
perfeito, mas inalcançável.
Parece-nos, entretanto, mais
conceitualmente preciso nomear a obra Não
Verás País Nenhum como uma distopia
– da mesma forma que outras famosas narrativas do século XX, e.g. 1984, de George Orwell (2001) e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley
(2005) – com as quais Loyola Brandão estabelece um diálogo intertextual. A
distopia, portanto, seria o antípoda perfeito da utopia: um lugar no futuro que
não se deseja.
As três narrativas supracitadas relatam
o cotidiano de indivíduos em um mundo totalitário, onde as liberdades
individuais são fraturadas em prol de governos fortes, que reprimem
violentamente qualquer eventual dissidência e subexistem apenas à manutenção do
poder pelo poder. Em Não Verás País
Nenhum, estudaremos o uso da violência, sobretudo simbólica (pautada na
sujeição do indivíduo ao discurso dominante), como recurso frequente em
governos totalitários. Estes regimes, segundo Chauí (2012: p. 494):
São
caracterizados por serem centralizados sob o papel do Estado, governado por
partido único com controle total sobre a sociedade, militarização,
nacionalismo, imperialismo censura do pensamento e da expressão, propaganda
estatal no lugar da informação, campos de concentração, invenção contínua de
“inimigos internos”.
Também, analisaremos a alegoria que Loyola
Brandão criou para denunciar a Ditadura Militar brasileira e seu projeto de
“país grande”, que vigorou de 1964 até 1985,[1]
conforme versão mais aceita; por fim, estudaremos a forma como o progresso
tecnológico interferiu no meio ambiente brasileiro, nesse tenebroso futuro
incerto da narrativa de Loyola Brandão.
O diálogo intertextual da distopia
de Loyola Brandão/ O reflexo do “Brasil Grande”
São notórias as
congruências entre a História do Brasil durante o governo militar (1964-1985) e
o enredo de Não Verás País Nenhum.
Sabemos que em uma análise literária sempre se corre o risco de interpretações
impressionistas: ora embasadas na biografia do autor ora no momento histórico
no qual se está inserido. Apontaremos neste artigo, entretanto, essas
“estranhas coincidências” nas narrativas oficiais (que podem ser igualmente
fictícias, subordinadas a interesses escusos; sombreadas pela visão particular
do historiador) e a ficção de Loyola Brandão. Seguinte ao exposto, White (2001:
p.137) escreve:
Os historiadores se
ocupam de eventos que podem ser atribuídos a situações específicas de tempo e
espaço, eventos que são (ou foram) em princípio observáveis ou perceptíveis, ao
passo que os escritores imaginativos – poetas, romancistas, dramaturgos – se
ocupam tanto desses tipos de eventos quanto dos imaginados, hipotéticos ou
inventados. O problema não é a natureza dos tipos de eventos com que se ocupam
historiadores e escritores imaginativos. O que nos deveria interessar na
discussão da “literatura do fato” ou, como preferir chamar, das “ficções da
representação factual”, é o grau em que o discurso do historiador e o do
escritor imaginativo se sobrepõem, se assemelham ou se correspondem mutuamente.
Embora os historiadores e os escritores de ficção possam interessar-se por
tipos diferentes de eventos, tanto as formas dos seus respectivos discursos
como os seus objetivos na escrita são amiúde os mesmos.
O exposto por White nos faz recordar da
ânsia do período realista por traduzir, em suas peças literárias, a “verdade, a
pura verdade, não mais que a verdade”, conforme epígrafe do romance O Cortiço, de Aloísio Azevedo.
Evidentemente, a narrativa de Loyola Brandão foi ancorada em sucessos
históricos, é a “sobreposição” pensada por White. No entanto, não há nada de
literal nela. No ano da publicação, 1981, a ditadura ainda vigorava no Brasil,
mesmo que distendida. Se Não Verás País
Nenhum fosse uma “fotografia” tal e qual daquele período histórico, Loyola
Brandão teria seu romance censurado para a publicação – fato que já havia
acontecido com o autor na edição de outra obra sua, Zero (1979).
O protagonista Souza narra – nas
primeiras seções do romance Não Verás
País Nenhum – seu cotidiano na cidade de São Paulo, junto a sua esposa,
Adelaide. Seu trabalho burocrático, que lhe valem fichas com as quais pode
comprar água e comida; sua ida ao bar da esquina e a onipresença do Esquema, um
tipo de governo totalitário e onisciente num futuro incerto do Brasil. Podemos
traçar um paralelo com 1984, de
Orwell (2001). Segundo nossa interpretação, haveria uma conexão intertextual
entre o Esquema da obra de Loyola Brandão e o Grande Irmão, presente no romance
do anglo-indiano Orwell. No estrato seguinte, a personagem Winston Smith menciona
pela primeira vez a entidade totalitária, o Grande Irmão:
Afuera, incluso a través de los ventanales cerrados,
el mundo parecía frío. Calle abajo se formaban pequeños torbellinos de viento y
polvo; los papeles rotos subían en espirales y, aunque el sol lucía el cielo
estaba intensamente azul, nada parecía tener color a no ser los carteles
pegados por toda parte. EL GRAN HERMANO TE VIGILA, decían las grandes letras,
mientras los sombríos ojos miraban a los de Winston. (ORWELL 2001: p. 09)
A descrição no fragmento acima de 1984 mostra um mundo sombrio no qual os
indivíduos têm seus passos meticulosamente vigiados. Chama-nos atenção, ainda,
o cenário de caos, sujeira, papéis espalhados por pequenos redemoinhos pela
rua. Apesar das cores alegres da natureza, a atmosfera é cinzenta. Já em Não Verás País Nenhum a cena é descrita
como um país de águas poluídas e escassas, avanço da desertificação, doenças
estranhas, miséria crescente, comidas artificiais que com aditivos químicos
injetam tranquilidade no sangue (há aqui o intertexto com a droga soma, do romance Admirável Mundo Novo). No fragmento seguinte – um diálogo entre
Souza e Tadeu, ex-colegas de trabalho –, identificamos uma inspiração no
romance de Huxley. Tadeu se dirige a Souza e sentencia: “É a química que eles
misturam [para deixar a população letárgica]. Os aditivos tranquilizantes.
Doses mínimas, homeopáticas, que vão minando o organismo. Corroendo a vontade,
acomodando” (LOYOLA BRANDÃO 1981: p. 115).
Em outro momento, Loyola Brandão (1981:
p.282) escreve um trocadilho com o título do livro de Aldous Huxley: “Pensou
que as ruínas são para você que viveu em outra época? Para mim, este é o mundo.
Quando envelhecer e soçobrar, aí será a ruína. Por enquanto é um mundo novo,
um admirável mundo velho” [grifos meus]. Neste excerto temos mais um
diálogo entre Souza e seu antigo colega docente, Tadeu. O protagonista do
romance tem 55 anos e no fragmento acima se autoenxerga como um pessimista
próximo da morte, mas com algum saudosismo.
Com a escassez de água[2],
a urina é reciclada para ser bebida. A região Nordeste do Brasil foi negociada
com transnacionais; a parte brasileira da Amazônia se transformou em um
colossal deserto. Vendo antigos souvenires de viagens ao Nordeste, Souza monologa
(LOYOLA BRANDÃO 1981: p. 44):
Ouço Adelaide
remexendo nas louças da cristaleira. Às vezes, ela se distrai, fica olhando as
taças, compoteiras, licoreiras, lembrando o significado de cada uma. Coisinhas
de barro trazidas do Nordeste, quando o Nordeste ainda pertencia ao Brasil.
Na distopia de Loyola Brandão, o Brasil
como o conhecíamos foi mutilado, vendido às grandes corporações internacionais,
diferentemente do ideal de grande potência, pregado pela publicidade militar da
década de 1970. Por outro lado, de forma contraditória, o Brasil amealhou
pedaços de outros países. Em um diálogo com o seu sobrinho militar, essa “nova
ordem” fica explícita (LOYOLA BRANDÃO 1981: p.73):
O que vale agora é
o internacionalismo. A multiplicidade. Aqui é um pedacinho [o Brasil]. Você
soma com os pedacinhos que temos por aí afora. Reservas no Uruguai, na Bolívia,
pedação do Chile, na Venezuela.
O escritor uruguaio Eduardo Galeano acusa o Brasil de praticar uma espécie
de subimperialismo junto aos países da América do Sul. Gaspari (2003: p. 194)
relata a possibilidade de invasão do país de Galeano pelos militares da
ditadura brasileira:
O general Breno
Borges Fortes, comandante do III Exército, com jurisdição sobre toda a
fronteira sul do país, estava metido num esquema audacioso: a invasão do
Uruguai caso o candidato de esquerdista Líber Seregni vencesse a eleição
presidencial de novembro de 1971.
A “sorte” uruguaia foi a eleição do
direitista Juan María Bordaberry que em 1973 promoveu um autogolpe e se tornou
ditador do país (cf. CAMPODÓNICO 2003, passim). O subimperialismo também
interferiu no Chile. Para a consumação do Golpe de Estado que depôs o
presidente Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973, entronizando o General
Augusto Pinochet, “quatro aviões militares brasileiros desceram em Santiago
anda quando as fronteiras do Chile estavam fechadas. Oficialmente, levavam
remédios e comida. José Serra, naquela altura preso no Estádio Nacional, ouviu
carcereiros falando português” (GASPARI 2003: p.356). Com relação à Argentina,
houve o famoso caso do impedimento de Juan Domingo Perón pisar em solo
brasileiro, quando se dirigia a Buenos Aires, em dezembro de 1964. Quando o voo
da empresa Iberia trazia do exílio o ex-presidente do país austral, na Espanha
desde 1955, para uma conexão no aeroporto do Galeão, o governo militar “não
deixou sequer que ele descesse para tomar um café no bar. O chefe do cerimonial
do Itamaraty entrou no avião e informou ao passageiro que ali começava sua
viagem de volta para a Espanha” (GASPARI 2003: p.360).
Dahl (2012: p.111) nos fornece uma
teoria que poderia explicar, em parte, a grande profusão de golpes de estado no
Cone Sul, durante o século XX:
Qualquer disputa em
que uma parcela da população de um país sinta que seu modo de vida ou seus
principais valores estão seriamente ameaçados por um outro segmento da
população provoca uma crise num sistema competitivo. Seja qual for o resultado,
o registro histórico confirma que o sistema vai, muito provavelmente, se
dissolver numa guerra civil, ou será substituído por uma hegemonia[3],
ou ambos.
As classes médias dos países
sul-americanos viam com terror o “espectro comunista”. A quase totalidade dos
países do subcontinente tem populações predominantemente católicas. Fora muito
difundida a ideia de que os regimes comunistas perseguiam os religiosos. O mais
importante, provavelmente, foi o temor de perder a posse de propriedades, que
poderiam sofrer desapropriação por parte de um governo comunista.
A cidade de São Paulo é descrita por
Souza de forma cinzenta, ele, um professor aposentado compulsoriamente pelo
Esquema devido ao formato “inadequado” de ensinar. É Souza, no estrato
seguinte, quem narra sua prática docente (LOYOLA BRANDÃO 1981: p. 21):
Quando eu dava aulas,
os estudantes perguntavam sobre tais tempos [o da Grande Locupletação[4],
quando alguns poucos privilegiados pelo Esquema enriqueceram ainda mais]. Eram
alunos que as escolas reputavam incômodos e terminavam afastados dos cursos. A
direção ouvia as gravações das aulas e me chamava. Para que eu informasse quem
tinha me interrogado. Denunciasse.
No início recusava.
Havia justificativas. Naquelas classes de trezentos alunos, eu alegava, era
impossível saber quem tinha feito a Pergunta Intragável, como dizia a direção.
(...)
Depois, a situação
foi ficando mais difícil, era sempre em minhas aulas que as perguntas
intragáveis surgiam. A direção queria saber por quê. Que tipo de coisas eu
andava dizendo fora das classes. Mandaram me seguir, plantonaram minha casa,
interceptaram meu telefone.
Uma característica frequente em regimes
totalitários, de esquerda ou direita, é a prática da delação. O “Grande Irmão”
que vigia nem sempre é um agente do Estado; pode ser um vizinho, colega de
faculdade, de colégio ou de trabalho, alinhado ideologicamente com o governo da
ocasião – ou simplesmente cooptado. No fragmento lido, notamos também a
recorrência às siglas ou expressões que indicam um sistema fortemente
estratificado: e.g. a Grande Locupletação e as Perguntas Intragáveis. É como se
as instâncias estatais se personificassem em um formato kafkiano e
burocratizado. São pertinentes as palavras de Bobbio (2005: p.31) acerca do
aparato de investigação de um governo autoritário:
(...) se é verdade que num Estado
democrático o público vê o poder mais do que num estado autocrático, é
igualmente verdadeiro que o uso dos elaboradores eletrônicos (que se amplia e
se ampliará cada vez mais) na memorização dos dados pessoais de todos os
cidadãos permite e cada vez permitirá mais aos detentores do poder ver o
público bem melhor que nos Estados do passado. Aquilo que o novel Príncipe pode
vir a saber dos próprios sujeitos é incomparavelmente superior o que podia
saber de seus súditos mesmo o monarca mais absoluto do passado.
A
publicidade ufanista da ditadura militar na primeira metade da década de 1970
pregava o Brasil como um país grande, ombreando com as potências ocidentais.
Durante esses anos, o presidente era Emílio Garrastazu Médici, os militares
foram mais agressivos com a dissidência de esquerda. Foi o período das
torturas, da intensificação do IPM (Inquérito Policial Militar), da supressão
do habeas corpus e outras ações
típicas de regimes autoritários. Em contrapartida a tudo o citado, houve um
incremento inédito no Produto Interno Bruto (PIB) do país. Gaspari (2002: p.
208-209) resume essa fase de bonança econômica:
A consistência da
explosão econômica podia ser aferida por indicadores como o aumento das
importações de máquinas e equipamentos (23%) e do consumo de energia elétrica
(10%). As montadoras do ABC paulista haviam posto na rua 307 mil carros de
passeio, quase o triplo de sua marca em 1964. Os trabalhadores tinham em suas
casas 4,58 milhões de aparelhos de televisão, contra 1,66 milhão em 1964. (...)
Era o Milagre Brasileiro. O século XX terminaria sem que o país passasse por
semelhante período de prosperidade.
O fragmento acima mostra a explosão do
consumo de bens duráveis no Brasil. Os dados coletados por Gaspari, no limite,
opõem-se à tibieza da economia no curto período de governo João Goulart
(1961-1964), que assumiu a presidência após a inesperada renúncia de Jânio
Quadros, em agosto de 1961 (cf. NASSER 1966, passim). Além do aumento
exponencial no consumo de bens, o regime militar quis incrementar a
infraestrutura do país. Gaspari (2002: p. 209) relata:
O governo festejava
o progresso associando-o ao imaginário do impávido colosso, gigante pela
própria natureza. Potência nuclear? O Ministério de Minas e Energia revelara a
descoberta de excepcionais jazidas de urânio no Nordeste e anunciara a compra
de uma usina atômica, a ser montada em Angra dos Reis. Integração nacional?
Médici determinara a construção da rodovia Transamazônica, que rasgaria 2280
quilômetros de mata tropical, ligando o Maranhão ao Acre. Gigante soberano?
Estendeu-se a duzentas milhas da costa o limite das águas territoriais
brasileiras. Tecnologia nacional? A Embraer recebera 230 milhões de dólares
para fabricar o primeiro jato brasileiro. Obras históricas? Acelerou-se a abertura
dos metrôs do Rio de Janeiro e de São Paulo, e anunciou-se o início da
construção da ponte que atravessaria a baía da Guanabara, ligando a praia do
Caju a Niterói.
Até o choque do petróleo de 1973, a
economia brasileira se expandiu com índices “chineses”, o chamado “milagre
brasileiro” [5].
Esse elemento – uma parcela da população com crédito e consumindo muito –
proveu a aceitação da longevidade do governo militar. Assim, Loyola Brandão
(1981: p. 57) enxergava esse peculiar momento da História do Brasil:
Pensem em nosso
sistema de represas, nas hidrelétricas, na usina nuclear, nas ferrovias de
minérios, na política energética, na descoberta do álcool combustível. O povo
foi ficando orgulhoso do que tinha. Deixou de ler os jornais que enfocavam más
notícias.
No fragmento acima podemos notar alusões
às usinas nucleares de Angra I e II; à construção da hidrelétrica de Itaipu –
num demorado acordo bilateral com o Paraguai (cf. GASPARI, 2002). Esses feitos
inegáveis depunham a favor do governo junto ao brasileiro médio. O regime
contava com publicidade qualificada, como por exemplo, os pequenos filmes
produzidos pelo cineasta e fotógrafo Jean Manzon[6]
(que trabalhara para Juscelino Kubitschek durante seu mandato, na segunda
metade dos anos 1950) e eram exibidos antes das sessões de cinema em todo o
Brasil. Todos estes curtas são ufanistas, como o que tratava da construção da
ponte Rio-Niterói, iniciada em 1966.
O escritor vate: a antevisão da
débâcle ecológica do Brasil de nossos dias
A distopia Não Verás País Nenhum nos brinda com vaticínios terrificantes.
Alguns – desafortunadamente – já se materializaram no Brasil. O livro foi
publicado em 1981, mas se antecipou a alguns eventos que foram notados com
intensidade inaudita a partir da segunda década do século XXI no país.
Loyola Brandão previu a escassez de água
no Brasil com mais de trinta anos de antecedência. E não foi a região Nordeste,
como era de se esperar, que sofreu as agruras extremas da falta de água, mas o
Sudeste, com destaque para as metrópoles Rio de Janeiro e São Paulo. Para
Barros (2015: p.67): “No Brasil, sempre que se falava de seca, a primeira
imagem que vinha à mente era o chão trincado da aridez do sertão
nordestino”. O sistema Cantareira que
abastece a capital paulista com seus 12 milhões de habitantes secou quase
completamente. O governo do estado de São Paulo está usando o chamado “volume
morto”, que é uma água que fica depositada mais ao fundo da represa. São três
quotas de volume morto e atualmente – fevereiro de 2015 – se está no fim da
segunda. Barros (idem) prossegue o relato:
No chamado Sistema
Cantareira, que abastece a Grande São Paulo, os especialistas sempre miraram o
ano de 1953 como o mais crítico, aquele em que o reservatório chegou pela
primeira vez a um patamar alarmante, a apenas 39% de sua capacidade. (...) 1953
era o marco, e dava-se como certo que uma dificuldade semelhante àquela seria
contornada. Mas houve o climaticamente imprevisível, e 2014 viu os
reservatórios baixar à metade do que se observara em 1953 – e em 2015, apenas
em janeiro, a queda é ainda maior.
É perturbador o relato de Loyola Brandão
(1981: p. 108) sobre a seca que assolaria o Brasil do futuro:
As secas
definitivas vieram logo após o grande deserto amazônico. Um ano sem gota de
água e as represas de São Paulo esgotaram. Apavorado, o povo fazia promessas,
enchia as igrejas. Organizavam procissões, novenas, romarias. Inúteis. Poços
artesianos começaram a ser abertos às pressas, às centenas.
Por muito tempo, a
secretaria de obras trabalhou em poços. Todas as verbas foram desviadas para os
programas de água. Cada estado contou consigo, não havia possibilidade de
ajudar o outro. O problema era igual para todos, estavam à beira da calamidade.
Um detalhe no fragmento acima merece
ênfase: o trecho em que se narra que “Cada estado contou consigo”. Apesar de a
crise hídrica ser mais presente em São Paulo – ao menos a cobertura da imprensa
– também o Rio de Janeiro e todo o Sudeste veem suas represas entrarem em
colapso. Em dezembro de 2014, o governo do estado do Rio de Janeiro descartou
desviar águas do rio Paraíba do Sul para minorar a seca no estado vizinho[7].
Evidentemente, não foram os 21 anos de
ditadura no Brasil que causaram o fenômeno que notamos hoje no Sudeste. As
mudanças climáticas são globais. Porém, durante o período ditatorial, muitas
foram as denúncias de que havia empresas multinacionais desmatando e
contrabandeando madeira da Amazônia (provavelmente até hoje). Devemos
mencionar, ainda, que a industrialização brasileira, tão decantada naqueles
anos, foi embasada num sistema predatório e antiecológico: o uso de
combustíveis fósseis, a extração mineral – sobretudo no Norte do país –, a
comercialização de commodities sem qualquer valor agregado, apenas retirando do
solo; o desmatamento das matas ciliares; o aterramento de lagos e manguezais
para atender à especulação imobiliária; além do desmatamento de milhares de
hectares para a criação de reses.
Em Não
Verás País Nenhum, diante da crônica falta de água, o brasileiro é obrigado
a beber urina reciclada para não morrer de sede. Existem “postos” para que pessoas saudáveis
doem sua urina para a transformação em água reciclada. É o que se nota no
fragmento seguinte:
Os Postos dão o
conforto, você fornece a urina. Para frequentá-los, é necessário um exame
médico rigoroso, análises detalhadas dos rins e bexigas. Comprovada sua boa
saúde, o cidadão privilegiado recebe
Ficha de Utilização para o Posto Apropriado, FUPA. É, que palavra feia.
A sua urina é
comercializada. Com a falta de água, aparelhos recolhem os mijos saudáveis numa
caixa central, onde se procede à reciclagem. Há mistura, tratamento químico
intenso, filtragem, purificação, refinamento, transformação. A urina retorna
branca, pura, sem cheiro, esterilizada.
Dizem que dá para beber. Eu é que não vou
experimentar. Nem o mijo meu, quanto mais o dos outros (LOYOLA BRANDÃO 1981: p.
27).
É relevante mencionarmos, ademais da
óbvia referência à falta de água, o uso desmedido de acrônimos no interior do
romance, e.g. FUPA. Essa característica está ligada a regimes autoritários/
policialescos, pois são burocratizados em larga medida. A seguir, Gaspari
(2002: p. 10-11) elenca algumas siglas comuns no Brasil dos militares: “AC –
Ato Complementar; AI – Ato Institucional; DOPS – Delegacia de Ordem Política e
Social; DOI – Destacamento de Operações Internas; DPG – Departamento de
Provisão Geral; OBAN – Operação Bandeirante; IPM – Inquérito Policial Militar
(...)”.
O aquecimento global é citado (avant la lettre) por Loyola Brandão em
muitos trechos. Selecionamos o seguinte (LOYOLA BRANDÃO 1981: p. 196):
O solo fervia, o
chão queimava a sola dos pés. E o que se via era a dança mais incrível, todos
pulando, os pés mal tocando o solo e se erguendo, como que impulsionados por
molas. Pulavam e gritavam de dor. (...) O sol comia as roupas, os quadros,
guarda-chuvas que não eram de seda preta. Lambia os cabelos, a pele, as carnes,
os ossos. Pelas nove da manhã sobravam montes de cinzas espalhados pela terra,
misturados ao asfalto derretido.
Falar em aquecimento global atualmente
está na ordem do discurso. Mas nos espanta que Loyola Brandão já tivesse, no
início dos anos 1980, essa preocupação com as práticas humanas insustentáveis.
No romance, o aquecimento do sol é tão intenso no solo brasileiro que o Esquema
iniciou um megaempreendimento: a construção de enormes marquises para abrigar a
população das intempéries climáticas. O trecho a seguir é ilustrativo (LOYOLA
BRANDÃO 1981: p. 321):
“Estabilidade,
ambiente selecionado e refrigerado”. Todo o potencial dos setores de obras
empregado, durante meses, nas Marquises. Nenhuma outra obra foi tão grandiosa.
Nem a Ponte Rio-Niterói, os canais do Nordeste, a Ferrovia do Aço, a
Hidroelétrica de Itaipu, a Transamazônica Recuperada.
Os feitos do “Brasil Grande” são
rememorados na publicidade para a construção das Marquises. Mas, como sói
acontecer no Brasil real, as construções não eram estáveis, selecionadas ou
refrigeradas: o oposto da propaganda oficial. O narrador comenta que “depois
que o sol nasceu, tivemos que vir para debaixo da Marquise e percebemos tudo. A
construção do século não passa de milhares de colunas sustentando uma laje de
concreto” (LOYOLA BRANDÃO 1981: p.321). Aqui, o fracasso do Esquema fica
explícito, como é o caso – na História oficial – da rodovia Transamazônica,
iniciada com pompa no governo dos generais e até os dias atuais não foi
concluída.
Dos anos 1970 até hoje, várias
montadoras de automóveis instalaram fábricas em todo o país. O brasileiro
abocanhou a oferta de veículos e as grandes cidades, e.g. São Paulo, Rio de
Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, Recife, entre outras, estão próximas de
parar, com suas vias abarrotadas de carros. Loyola Brandão anuncia o Grande
Congestionamento (a expressão é com maiúsculas, personificada). Todos os carros
ficam parados, pois não há para onde trafegar. O trecho seguinte é uma parte de
um diálogo entre Souza e Tadeu (LOYOLA BRANDÃO 1981: p. 121):
- Quase fiquei
louco, Souza, naquela noite. Queria matar, pegar alguém. Como buzinavam,
aceleravam. Podia ver o ar preto de fumaça. A maioria esgotou a gasolina e o
álcool do tanque. Ninguém desligava o motor. Pela manhã, as pessoas continuavam
dentro dos carros. Como se pertencessem a ele (...).
- Na minha rua teve
gente que não acreditou noticiário, tirou o carro da garagem, pela manhã, e foi
embora. Voltou a pé.
- Teve motorista que ficou uma semana, duas,
sem abandonar o carro (...). As famílias traziam mudas de roupas, café, comida.
E o desespero quando souberam que não circulariam mais? Choravam diante do
automóvel, inconsoláveis, lamentando como se fosse parente morto. Mulheres
desmaiavam, histéricas.
Se o “Grande Congestionamento” ainda não
se concretizou, está próximo de se materializar. Algumas municipalidades
desapropriam casas, rasgam avenidas, constroem túneis e viadutos, mas a
voracidade com que o brasileiro compra automóveis particulares é muito superior
ao aumento no número de vias. Devemos enfatizar o caráter autoritário do
Esquema, que não apresentou qualquer tipo de solução para o problema,
limitando-se a proibir o uso dos carros passeio.
Na obra de Loyola Brandão percebemos
acrônimos interessantes ou justaposições de palavras, e.g. Civiltares. Em relação à História do Brasil, poderíamos comparar os
civiltares aos agentes da Polícia Civil, aos integrantes da Oban, ou mesmo ao
grupo surgido ainda durante o governo João Goulart, o CCC, Comando de Caça aos
Comunistas, formado por civis e alguns agentes da polícia infiltrados (para o
CCC cf. DREIFUSS 1981, passim). Num diálogo com o sobrinho, um militar, Souza
discorre sobre os Civiltares (LOYOLA BRANDÃO 1981: p.111):
- Tio, os
Civiltares foram formados pela ala dura que não concordou com as renovações
efetuadas no Exército. Esta ala se uniu aos civis radicais que não concordaram
com as aberturas do Esquema. Então formaram sua própria organização.
Comparamos os Civiltares a uma ala
radical do Exército autointitulada Comando Delta. Foram os responsáveis pela
malograda explosão de uma bomba na festa de comemoração do 1° de maio de 1981,
no estacionamento do shopping Riocentro (cf. GUZZO 1981). O sargento do
Exército Guilherme Pereira do Rosário e o capitão paraquedista Wilson Luís
Chaves Machado (idem: p.21) eram ligados ao DOI-CODI (Destacamento de Operações
de Informações/ Centro de Operações e Defesa Interna). A bomba iria ser
explodida para que a culpa fosse posta no grupo MR-8 de Outubro, extinto desde
1973. O objetivo mais provável era desacelerar o processo de abertura política,
em curso desde 1979. Sem que quisessem, a dupla explodiu a bomba dentro do
automóvel Puma onde estavam, causando o óbito do sargento.
O anônimo sobrinho de Souza estudou por
“dois anos na Escola Superior de Integração” (LOYOLA BRANDÃO 1981: p.23). De
certo, é uma alusão à famosa Escola Superior e Guerra (ESG). Sobre essa escola
de formação, Gaspari (2003: p. 121-122) comenta:
Conhecida também
pelo pernóstico apelido de Sorbonne,
a Escola Superior de Guerra era produto de um sincero interesse da cúpula
militar pelo aprimoramento intelectual dos oficiais superiores, mas também de
um desejo dos ministros de manter longe dos comandos de tropa e de posições
importantes no Estado-Maior os oficiais de muita capacidade e pouca confiança
(...).
A seleção dos 483
militares que fizeram qualquer tipo de curso na ESG entre 1950 e 1959 deu-se
sem dúvida no estrato superior da oficialidade. Dois chegaram à Presidência da
República (Geisel e Castello Branco), 23 ao Ministério, e, deles, seis
chefiaram o Exército.
O ambicioso e inteligente sobrinho de
Souza fomenta um grupo para contrabandear e estocar víveres à revelia do
Esquema. Como citado acima, os que estudaram na ESG (no romance, ESI) foram
treinados para assumir os postos de comando na hierarquia militar – e política
– do Brasil. O sobrinho de Souza é ambíguo quanto às suas intenções: ora elogia
o Esquema, ora tenta implodi-lo para benefício próprio. Talvez, a personagem
tenha sido inspirada no delegado Sérgio Paranhos Fleury, torturador contumaz,
que, entre seus feitos para o Regime, está o assassinato do guerrilheiro
comunista Carlos Marighela. Fleury integrava grupo que traficava drogas,
fomentou o “Esquadrão da Morte” e tinha acordos com vários empresários para lhes
proporcionar segurança[8]
(cf. GASPARI 2002: p. 316). Sobre esses grupos marginais, escreve Loyola
Brandão (1981: p. 323), servindo-se do sobrinho de Souza como narrador:
Organizações
cresceram, à margem do Esquema. Associações paramilitares com livre trânsito.
Grupos clandestinos paraoficiais. Bombas passaram a explodir. Tinha sido uma
constante nos anos setenta e era um tempo que parecia terminado.
O excerto poderia se referir, ademais,
ao já mencionado ataque terrorista ao Riocentro, em 1981. A verdade é que o
terrorismo de Estado foi utilizado às fartas nos “Anos de Chumbo”. Seria
inocência acreditar que o autointitulado Comando Delta agia isoladamente, sem a
anuência de alguns generais de alta patente.
Outro vaticínio de Loyola Brandão se
refere à liberação dos documentos do período ditatorial do Brasil. Só quase
trinta anos decorridos do fim da ditadura (2012) foi instaurada uma comissão
para julgar os crimes do governo no período. No seguinte trecho pode se
observar essa previsão:
Quando passo pelos
bairros da Circunstancial Número 14, vejo os prédios imensos onde está guardada
a memória nacional. Ninguém sabe que fatos estão depositados ali. Para não
dizer das pastas carimbadas: A SEREM ABERTAS DENTRO DE DOIS SÉCULOS. São
documentos da Locupletação [termo usado por Loyola Brandão para indicar os
empresários que enriqueceram a partir do regime totalitário que fora implantado
no Brasil] (LOYOLA BRANDÃO 1981: p.21-22).
Não nos parece exagerado “os dois
séculos” para a abertura dos arquivos da ditadura brasileira. Sem contar a
grande quantidade de documentos destruídos, a Comissão Nacional da Verdade, que
começou os trabalhos em 2012, não teve acesso a toda e qualquer documentação
dos porões militares. As camadas mais profundas dos textos demorarão a se
tornarem públicas. Muitas famílias, suas empresas privadas, políticos e
instituições da república seriam implicados nos sucessos do intervalo
1964-1985. Estes exercerão toda pressão para adiar a abertura irrestrita dos
arquivos.
A violência empregada contra a
dissidência
Da mesma forma que na Argentina
(1976-1983), no Chile (1973-1990) e outros países do Cone Sul, a ditadura
brasileira foi violentíssima. A oposição armada foi esmagada pela repressão
militar – sobretudo a partir do Ato Institucional Número 5 (AI-5), de 13 de
dezembro de 1968 (cf. GASPARI 2002).
Não
Verás País Nenhum pouco se refere à violência física como arma da “guerra
suja”. No romance, o regime totalitário já está consolidado e funciona em
motocontínuo. As cenas de violência são raras, porém, explícitas. Na seguinte,
vemos um grupo paramilitar, que contrabandeava recursos para a própria
subsistência, capitaneado pelo sobrinho de Souza, sendo perseguido pelos
Civiltares (LOYOLA BRANDÃO 1981: p.251-252):
O helicóptero
voltou, atirando. Voava baixo e a linha de fogo derrubava, arrancando braços,
pernas, pedaços da cabeça. Fumaça, gritaria, lixo voando como andorinhas no
verão. As pessoas não reagiam, permaneciam extáticas sob a artilharia.
O sobrinho de Souza (anônimo no romance,
tal qual um agente) é quem elabora um esquema alheio ao Exército para
contrabandear mantimentos. Estes são estocados na casa (transformada em
“aparelho”) de Souza e Adelaide. Discorrendo sobre as guerrilhas, dos policiais
e dos torturadores, Gouveia de Araújo (2012: p. 152) enuncia:
Nossa abordagem da
violência do Estado exclui interpretações que veem no indivíduo em si o foco
irradiador de todos os males. Antes da atuação do torturador, do policial ou de
tropas de combate antiguerrilheira, existe um sistema lúcido que usa de
mecanismos prodigiosos na castração das reações à intolerância ditatorial.
Violência estatal sustentada por via fiscal e por doações de poderosos grupos
interessados em manter sua hegemonia a qualquer custo, independentemente dos
alvos individuais atingidos.
Corrobora o exposto por Gouveia de
Araújo a construção da temida Operação Bandeirante (Oban), em 1969. Sobre a
arquitetura da Oban em São Paulo – que depois se estenderia para outras
metrópoles do Brasil –, escreve Gaspari (2002: p.61):
O
prefeito da cidade, Paulo Maluf, asfaltou a área do quartel, trocou-lhe a rede
elétrica e iluminou-o com lapadas de mercúrio. O governador Roberto de Abreu
Sodré cedeu-lhe espaço numa delegacia na esquina das ruas Tomás Carvalhal e
Tutóia, a cinco minutos do QG do Ibirapuera, para que nela fosse instalada a
Oban.
O exposto por Gaspari nos leva a inferir
que havia um conluio de várias instâncias de poder no Brasil para suprir as
forças coercitivas. Foi um combate desigual. Era do interesse dos grupos
conservadores que a repressão aos guerrilheiros fosse eficiente. A coerção das
Forças Armadas, e de sua linha auxiliar, os militares estaduais, recebeu
suporte de todas as instâncias da administração pública. Sem contar os grandes
empresários, temerosos de ações de esquerdistas que sabotassem suas fábricas e
empresas, além dos sequestros. Gaspari (2002: p.62) continua:
A reestruturação da
Polícia do Exército paulista e a Operação Bandeirante foram socorridas por uma
“caixinha” a que compareceu o empresariado paulista. A banca achegou-se no
segundo semestre de 1969, reunida com Delfim [Netto] num almoço no palacete do
clube de São Paulo (...). O encontro foi organizado por Gastão Vidigal, dono do
Mercantil de São Paulo e uma espécie de paradigma do gênero. (...) Segundo
Paulo Egydio Martins, que em 1974 assumira o governo de São Paulo, “aquela
época, levando-se em conta o clima, pode se afirmar que todos os grandes grupos
comerciais e industriais do estado contribuíram para o início da Oban”.
No que toca à Grande Locupletação,
podemos compará-la aos anos que antecederam o golpe militar de 31 de março de
1964. Segundo Gaspari (2003: p.156-157):
Oitenta e três dias
após a chegada de Jango ao Planalto, as “classes produtoras”, autodenominação
gloriosa que o empresariado se atribuía, aquartelaram-se, fundando o Instituto
de Pesquisas e Estudos Sociais, o IPÊS. (...)
Estatutariamente
apolítico, o IPÊS destinava-se a estimular pesquisas e debates a fim de
“contribuir para o progresso econômico” (...). Poucos clubes conseguiram
agrupar tantos sobrenomes: Guinle de Paula Machado, Jacobina Lacombe, Ermírio
de Moraes, Toledo Piza, Quartim Barbosa, Dumont Villares. Poucos negócios
juntaram tantos logotipos: Esso, Mesbla, Rhodia, Arno, Sul América, Antarctica
Paulista. Poucos ministérios reuniram tanto talento: Delfim Netto, Mário
Henrique Simonsen, Augusto Frederico Schmidt, Miguel Reale, José Rubem
Fonseca.
O grande capital no Brasil se empenhou
pela deposição de João Goulart. Os anos 1960 presenciaram o auge da Guerra
Fria. O mundo esteve à beira de uma hecatombe nuclear durante a crise dos
mísseis em Cuba, em 1962. Naqueles anos não havia espaço para a moderação: ou
se estava posicionado a favor dos países ocidentais e capitalistas, ou ao lado
dos comunistas. Na lista acima, chama-nos a atenção à presença de dois grandes
intelectuais: o ex-delegado José Rubem Fonseca (que em alguns de seus contos
criticou a ditadura) e Augusto Schmidt.
Considerações Finais
O copioso romance Não Verás País Nenhum traz uma alegoria da ditadura militar
brasileira. O terror que um governo hegemônico (no sentido proposto por Robert
Dahl, 2012) pode causar na sociedade foi devidamente exposto pela prosa fluída
de Ignácio de Loyola Brandão.
O romance se prestaria a um enorme leque
de análises: de um regime totalitário até à violência – no caso em questão,
eminentemente simbólica – empregada por essas modalidades de governo para
dissuadir a oposição. Mas os temas que poderíamos explorar na obra vão além: a
preocupação ecológica, entre eles, é o mais marcante.
Dizia-se que o matemático Laplace
imaginou um demônio que poderia prever o futuro, se ele conhecesse em absoluto
o passado e o presente. Pelos vaticínios de Loyola Brandão se infere que o
escritor possui um incrível domínio da História do Brasil. A já mencionada
preocupação com a sustentabilidade – palavra que orbita o mainstream da ordem do discurso nos dias que correm – transforma em
urgência a (re)leitura de Não Verás País
Nenhum.
Referências Bibliográficas
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São Paulo: Record, 2005.
[1] Para a data do fim da Ditadura
brasileira não existe consenso. O sociólogo Bolívar Lamounier (2005) acredita
que o fim do período de exceção não se dá com a eleição indireta de Tancredo
Neves, pelo Colégio Eleitoral em janeiro de 1985, mas com a primeira eleição
direta para presidente, em 1989. O cientista político Jorge Zaverucha (2005)
vai além: para ele, ainda não vivemos em um regime democrático – ao menos até o
fim do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (2002) – tendo em vista a
manutenção dos “enclaves autoritários” do regime militar no Brasil notados nos
dias correntes.
[2] Analisaremos essa questão com
mais vagar na seção seguinte.
[3] Para Dahl, “hegemonia” tem o
significado de “governo autoritário”.
[4] “Os noticiários são inócuos.
Novelas, inaugurações, planos do governo, promessas de ministros. Como
acreditar nesses ministros, a maioria centenários? Quase perpétuos,
remanescentes a fabulosa Época da Grande Locupletação. O povo ainda fala desses
tempos insondáveis. (...) Foi um período de intolerância, amordaçamento,
silêncio” (LOYOLA BRANDÃO 1981: 20-21).
[5] O brasileiro é sempre
bem-humorado. Como exemplo, a trova do poeta Cacaso: “Ficou moderno o Brasil/
ficou moderno o milagre: / a água já não vira vinho,/ vira direto vinagre”
(GASPARI 2003: p.269).
[6] Podem ser vistos na íntegra no
Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=OFhfgqNs2JY&list=PLpqrYsgahqCURJLVqF72sLbrkmK7M8kka. Acesso em 3 de fevereiro de
2015.
[7] Fonte: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/03/rj-vai-emitir-nota-tecnica-sobre-desvio-do-rio-paraiba-para-abastecer-sp.html. Acesso em 04 de fevereiro de 2015.
[8] Para mais informações
http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/tag/sergio-fleury/