Vanessa Zucchi
RESUMO: Esse
artigo tem por objetivo abordar o fenômeno da pós-modernidade, ressaltando
algumas das suas principais características, a fim de entender seus ecos na
literatura contemporânea. Nesse percurso, será analisado o conto “Frenesi”, de
Luís Roberto Amabile, cuja estética mostra-se um expoente significativo para entender
essa configuração literária.
Palavras-chave: pós-modernismo,
literatura contemporânea, conto.
ABSTRACT:
This article aims to discuss the post-modernity, and
some of its main characteristics, to understand its expression in the
contemporary literature. Then, It will analyze the short story "Frenesi",
by Luis Roberto Amabile, whose aesthetic is significant to understand this
phenomenon.
Keywords: post-modernity, contemporary literature, short story.
1 Vestígios
da pós-modernidade na sociedade
A experiência das guerras mundiais foi responsável
pela instauração de uma nova consciência humana em que a fragilidade do corpo,
evidenciada como nunca, deixou de chocar - a iluminação excessiva cegou. A
partir disso, instaurou-se um sentimento de desconfiança e mal estar, abalando a
solidez que marcava a dinâmica social. Esse movimento significou a erupção de
uma nova lógica cultural: entramos na chamada pós-modernidade.
Nesse sentido, o pós-modernismo pode ser
considerado, antes de tudo, uma mudança epitesmológica, emergida com o declínio
dos ideais racionalizadores e dos conceitos totalizantes defendidos à luz das
ciências. Por isso, a partir de então, percebe-se
uma preocupação em "descanonizar a cultura, fazer ruir a autoridade,
revisar todos os programas, desmistificar o conhecimento, desconstruindo as
linguagens do poder, do desejo, do engano” (GUELLFI, 1994, p.169).
Enquanto movimento, o pós-modernismo tem início
partir da segunda metade do século XX e caracteriza-se pelo individualismo,
pela cultura de massa, pelo predomínio do instantâneo e pela celebração do
consumo. Além disso, é possível perceber mudanças no campo econômico, cultural,
industrial e tecnológico. Essas transformações abrem um leque inesgotável de
discussões.
Entretanto, a definição de pós-modernidade ainda
carece de precisão, e a tentativa de circunscrever
esse movimento numa esfera fechada, embora
tentadora, é infértil. Isso porque esse próprio conceito não é passível
de delimitação nem estável, e não poderia ser diferente, uma vez que reitera a
certeza de que nenhum discurso pode ser totalizador. Ou seja, a imprecisão por
trás dessa denominação é resultado da própria condição pós-moderna - a ausência
de garantias é uma de suas características.
David Harvey (1998, p.12) concebe a modernidade como
“um rompimento impiedoso com toda e qualquer condição precedente”, mas também “caracterizada
por um processo sem-fim de rupturas e fragmentações internas no seu próprio
interior”. De encontro a essa concepção, Lipovetsky (2005) nega o conceito de
pós-modernidade, defendendo que não houve uma ruptura com o passado, apenas uma
intensificação dos traços da modernidade. Estaríamos, para o filósofo, na
hipemodernidade.
Outros pensadores significativos
como Frederic Jameson (2002), Jean-François Lyotard (2008) e Anthony Giddens (1991) também assumem ainda diferentes posturas frente
esse fenômeno. Ademais, a distinção entre pós-modernismo e
pós-modernidade torna o debate ainda mais complexo.
Não é foco desse trabalho alongar-se demasiado nessas
concepções, nem analisar as diferentes configurações que o pós-modernismo
adquire. O que interessa é pensá-lo como contorno para auxiliar a compreensão
das características que marcam a contemporaneidade, momento em que tudo é tão
fluido e fugaz que leva o polonês Bauman (2001) a chamá-lo de modernidade
liquida. A partir disso, objetiva-se conceber o pós-modernismo como prisma para
pensar a literatura. Nesse sentido, através da leitura e da análise do conto
“Frenesi”, buscar-se-á evidenciar as características da pós-modernidade que se
imiscuíram na literatura contemporânea, consolidando uma nova estética
literária.
3
Vestígios da pós-modernidade em "Frenesi”
“Frenesi” faz parte do livro de contos O amor é um lugar estranho, publicação de
estreia do escritor Luis Roberto Amabile. Os contos da obra tateiam um percurso
reflexivo, fazendo emergir vozes cuja dimensão desestabilizada (ou
desestabilizadora) resguarda peculiaridades tipicamente contemporâneas. Cercadas
pelo vazio, os personagens são marcados por conflitos e incertezas que colocam em
pauta problemas existenciais. Nesse sentido, muito mais que uma estética
pós-moderna, o que está em jogo nessas narrativas é uma expressão
pós-moderna.
“Frenesi” é um conto curto, cuja trama,
aparentemente simples, encena a complexidade identitária de um personagem sem
expectativas, desamparado em uma sociedade de valores corrompidos. Percebe-se
que na singularidade desse sujeito vive um universal.
Narrado em primeira pessoa, o conto desenvolve-se a
partir do momento em que o personagem-narrador é abordado por um ladrão e
decide enfrentá-lo. Surpreendido pela reação, o assaltante foge, permitindo que
o personagem continue sua caminhada e suas reflexões. Nessa trama é possível perceber
dois núcleos narrativos: o primeiro pode ser identificado como a história da
tentativa de assalto, e o segundo como a reflexão desencadeada por ela. Na
urdidura do conto, o que é supérfluo no primeiro núcleo é essencial no segundo,
e vice-versa – é a partir dessa tensão que a narrativa desenvolve-se.
O conto é composto por três personagens não nomeados
– o personagem-narrador, o ladrão e o menino – que mantêm uma relação superficial
e ímpar entre si. A construção narrativa desses personagens acontece por
contrastes, metonimicamente representados no olhar: O ladrão, com olhos de
medo, o menino com olhos cândidos e o narrador com olhos vazios. Há um
reconhecimento no outro, mas no não
reconhecimento - o outro é o que eu não sou. Aliás, é por contraste toda a
trama é tecida.
Enquanto o romance tradicional (sobretudo a
narrativa moderna) imprimia no leitor uma ideia de completude, através de um
enredo ordenado e fechado estruturalmente – havia um começo, um desenvolvimento
e um fim – na pós-modernidade, há uma subversão da sequência narrativa em favor
da colagem de flashes e imagens, retratando flagras banais. Não existe unidade
- o que existem são faíscas, momentos estilhaçados. Nesse sentido, se para
Friedman (1958) o objetivo do conto é impactar o leitor, valendo apenas do
melhor momento da matéria narrativa, “Frenesi”, apoiada na fugacidade do
cotidiano e na dissolução do tempo, rompe essa premissa. Não há uma ação, e nessa inexistência, nessa
prevalência do nada, tudo acontece. É no não dito, nos silêncios, nas
reticências, nas lacunas, que a narrativa se afirma. O grande momento
desaparece em favor da interpretação e da reflexão advinda de fatos
corriqueiros. Nesse sentido, o conto não narra uma história, mas fragmentos de
uma história, ou melhor, de várias (possíveis) histórias – do menino, do ladrão
e do narrador.
Tendo em vista o caráter lacunar do texto, cabe ao
leitor a função de estabelecer as ligações de sentido, tornando-se cúmplice da
trama. Além disso, a narrativa expande-se para seu exterior ao centrar forças
para despertar no leitor dúvidas ontológicas, tornando-o expoente essencial
para construção simbólica do texto. Nesse sentido, ao invés de ser mero
receptor, o leitor assume papel de um agente ativo. Sendo assim, se o narrador tradicional era
como um oleiro que constrói o vaso de argila deixando nele sua marca, (BENJAMIN,
1994), na ficção contemporânea essa
construção é trabalho do leitor. A ficção é fornecida ao leitor como matéria
bruta, é argila, cabe ao leitor modelá-la obedecendo a certos limites que lhe
são impostos.
A brevidade temporal do conto faz com que o espaço narrativo
também seja restrito. Além disso, o leitor não encontra no conto elementos que
auxiliem a elaboração imagética do ambiente em que trama se desenrola. Mas essa
escolha não é aleatória: a falta de descrição do espaço corrobora para que haja
a focalização das reflexões em detrimento da ação. Nesse contexto, o tempo
passa a funcionar como eixo norteador tanto do personagem, quanto da narrativa.
Com isso, arquiteta-se uma singular relação entre tempo, espaço, personagem e
texto.
No percurso
do personagem o tempo ora corre (como o ladrão) e ora para (como a criança),
mas, em todas as situações, o tempo é pesado, é algo com o qual é preciso
lutar, algo que é preciso superar. A consciência desse fardo fica evidente,
sobretudo na última estrofe, quando o personagem-narrador observa a criança
brincando. Nesse momento o personagem confronta-se consigo mesmo ao
(des)identificar-se com a criança. A presença
marcada do tempo causa um desconcerto nesse encontro, e, a partir disso, o
sentimento de resistência parece ceder lugar à resignação.
Há três movimentos no conto: enquanto o menino é
representado parado (brincando) e o ladrão correndo (em fuga), o narrador
apenas caminha. O personagem encontra-se em um labirinto sem muros, em que
todas as possibilidades estão abertas, no entanto, ele apenas caminha – ele caminha,
mas não vai a lugar algum. Na
pós-modernidade, o indivíduo perdeu o sentido último da vida e permanece numa
constante busca. Essa busca é metaforizada pelo movimento do personagem –
sempre caminhando, sem nunca chegar. Entretanto,
esse trajeto empurra-o para diferentes direções: embora ele ande aparentemente
em uma linha reta, é continuamente deslocado. Nesse percurso, não há centro,
nem periferia, todos os caminhos – o do personagem-narrador, o do ladrão, o da
criança - se cruzam em um (mesmo) espaço vazio.
É essa mesma sensação de vazio que leva o narrador a
desafiar o ladrão: “Eu esperava que ele me desse ao menos uma cabeçada, ou me
empurrasse e me chutasse. Eu queria ação, que ele começasse alguma coisa, para
eu quem sabe revidar.” (AMABILE, 2012, p.36). A necessidade de ação, de alguma
coisa, qualquer coisa, porque o personagem “não tinha nada. Só câncer.” (AMABILE,
2012, p.36). E sabemos que ele gostava de sabor, mesmo que não fosse tão
agradável, afinal “é melhor que gosto de nada” (AMABILE, 2012, p.36). Percebe-se que através da ambivalência, de
dualismos entre o algo e o nada, personagem e conto são
sincronicamente arquitetados.
A não vivência da espetacularização da morte pelo
sujeito contemporâneo provoca mudanças na forma com que ele se relacionando
consigo e com o mundo. O personagem-narrador, compartilhando essa condição,
vive efetivamente a consciência da morte apenas no momento da descoberta do
câncer. Tendo em vista que é através do confronto com a morte que os sujeitos
tomam consciência dela, a descoberta de uma doença que pode ser terminal
desperta sua certeza. Por isso, nesse contato, o personagem experimenta pela
primeira vez a certeza de que vai morrer - talvez não pelo câncer, talvez não logo, o
quando e o porquê da morte são irrelevantes, o que é significativo é a evidência
da fugacidade da vida que o personagem passa a ter ao descobrir-se com uma
doença fatal. A partir disso, existe a
certeza de estar-se, não mais vivendo, mas morrendo. Por isso, o personagem, ao
desafiar o ladrão, desafia a morte - ou uma possibilidade dela. Vencer uma
disputa com a morte é o que dá ao personagem a sensação de estar vivo.
Em “Frenesi” tenciona-se a representação da condição
humana reduzida ao nada. A vida parece destituída de valor. O ladrão ameaçando
o narrador sem hesitar, o personagem revidando, em busca de ação, a alusão às
mortes no trânsito, a tessitura narrativa carregada de um pessimista exacerbado:
tudo evidencia a fragilidade da vida.
No final do conto, a presença de uma criança com olhos
cândidos brincando no chão poderia indicar um contraponto, mas essa fenda de
esperança se desfaz com a fala do narrador que, ao indicar que possivelmente já
tivera uma candidez nos olhos um dia, evidencia a transitoriedade dessa
inocência. Para Santos (2004, p.10) a sociedade contemporânea é vazia de
valores e esperança. O desenlace da narrativa acontece no personagem, assim
como no início, centrado em sua solidão.
Considerações Finais
Alimentando-se das modificações sociais e culturais
da pós-modernidade, a obra de arte literária abre-se para essa percepção de
mundo, facultando uma nova consciência – artística e leitora. Os elementos que
possibilitam uma análise crítica dessas obras são viscerais, não estão na sua
superfície, mas na sua profundidade. A literatura, na pós-modernidade, não se
fecha em si, ela é aberta hermeticamente.
A vertigem da sociedade contemporânea leva o homem a
perder-se de si, silenciando-o. Por isso, seguindo os pressupostos de Benjamin
(1987) a única experiência que ainda pode ser compartilhada é a inexistência
(ou a possibilidade) da experiência – não a coisa,
mas o que ela não é ou mesmo o que poderia ser.
Além disso, tempo e espaço são reduzidos a fragmentos,
a identidade do sujeito é descentralizada, o individualismo sobrepõe-se ao
coletivo, o intercâmbio de experiências perdeu o valor. Compreende-se assim
porque a narrativa tradicional, já em declínio no século passado, desapareceu: ela
não resistiu à pós-modernidade, por isso, seu desaparecimento é sintomático.
Nesse sentido, se o romance clássico representa a
morte da narrativa tradicional, iniciando um período marcado pela dificuldade
em compartilhar experiências, o conto pós-moderno pode ser considerado o
expoente máximo dessa nova configuração literária instaurada pela soberania do
silêncio.
Em “Frenesi” o narrador parece tentar exprimir o que
não é mais exprimível – a dor, a morte, o medo, a solidão – por isso seu discurso é construído no vazio.
Nesse sentido, o conto reitera o silenciamento que o sujeito pós-moderno vive.
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