Fernando Azevedo Neckel Junior
Mestrando do PPGLetras da Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM).
RESUMO:
Este texto tem por objetivo apresentar uma relação entre A Obra-Prima Ignorada de Honoré de Balzac e o texto de Lessing
sobre as fronteiras da pintura e da poesia. Na história de Balzac encontramos
discussões sobre ideais artísticos entre três pintores, dois desses sujeitos reais,
Poussin e Porbus, e um deles fictício, Frenhofer. O último é apresentado como
uma espécie de mentor de Porbus e é ouvido atentamente pelos outros dois
pintores. Frenhofer apresenta claramente sua posição quanto à o que deve conter
um bom quadro, normalmente usando termos que pertencem à escrita para
esclarecer seus ideais. Selecionamos excertos para esclarecer seus argumentos.
Em comparação ao texto de Balzac, lançamos mão do Laocoonte de Lessing a fim de discutir a relação entre a pintura e
a literatura e mostrar o objetivos artísticos dessas.
Palavras-chave: Arte. Literatura. Pintura,
ABSTRACT: This paper aims to present a
relationship between The Unknown
Masterpiece of Honoré de Balzac and the Lessing’s text on the borders of
painting and poetry. In Balzac's story, we find discussions about artistic
ideals between three painters, two of the real subjects, Poussin and Porbus,
and one fictional, Frenhofer. The latter is presented as a sort of mentor of
Porbus, he is heard carefully by the other two painters. Frenhofer clearly
presents its position on what should contain a good work of art, usually using
terms that pertain to writing to clarify his ideals. We selected and discussed
excerpts to clarify his arguments. Compared to the text of Balzac, we used the
Lessing’s text to discuss the relationship between painting and literature and
show the artistic goals of these.
Keywords: Art. Literature. Painting.
It tutors nature. Artificial strife
Lives in these touches livelier than life.
(Timon of
Athens)
INTRODUÇÃO
As fronteiras que
separam os territórios da poesia e da pintura foram demarcadas por Lessing em
seu Laocoonte. No entanto, durante o
século XIX não faltaram esforços para defender, criticar ou problematizar as
posições de Lessing tratando-se das duas formas de arte. Na novella
A obra-prima ignorada, Balzac coloca três pintores, dois reais e um
fictício, em discussões sobre os anseios do artista e os ideais de arte. No
texto encontramos algumas paragoni
(competições) que tornam possível uma frutífera discussão sobre os limites da
arte, mais especificamente, da literatura e da pintura.
Este trabalho pretende analisar as
querelas quanto aos objetivos da arte discutidas pelos personagens no livro:
imitação ou expressão? Linha ou cor? Pintura ou literatura? A partir de trechos
selecionados da narrativa de Balzac pretende-se articular a questão referente
às fronteiras da arte debatendo “até onde podem ir” a literatura e a pintura.
A narrativa de Balzac direciona a atenção do
leitor ao personagem Frenhofer, pintor fictício e supostamente discípulo de
Mabuse, que possui uma grande obra, um retrato chamado Catherine Lescault, na
qual trabalha há dez anos. A história inicia com o encontro entre Frenhofer,
Poussin e Porbus no ateliê do último. Frenhofer é uma espécie de mestre de
Porbus, já Poussin é um jovem pintor com toda sua carreira pela frente que vai
à Paris em busca do sucesso. O ápice da narrativa se dá com uma espécie de
troca entre a namorada de Poussin, Gillete, e a obra de Frenhofer. Gillete é
oferecida como modelo para o pintor que assim exibirá sua grande obra,
Catherine Lescault, aos dois pintores.
Balzac dividiu sua história em duas
partes, a primeira chamada Gillete, nome da amante, e a segunda Catherine
Lescault, nome da obra. A primeira parte concentra-se no encontro dos três
pintores e uma “aula” de Frenhofer aos outros dois pintores. Essa “aula” surge
com os comentários de Frenhofer sobre uma pintura de Porbus, um retrato de
Maria de Médicis, o qual não há registro de que Porbus realmente o tenha feito.
A segunda parte é a troca entre a amante de Poussin e o quadro de Frenhofer,
esse se revela ser um emaranhado de cores confusas e identifica-se apenas um
pedaço de pé no canto da tela. Ao detectar que Poussin e Porbus não aprovaram a
pintura, Frenhofer os expulsa de seu ateliê, queima suas obras e morre com o
incêndio.
FRENHOFER E O IDEAL ARTÍSTICO
Frenhofer é representado no texto como
um sujeito encorpado de exageros e atitudes dramáticas ao falar sobre pintura e
arte. No entanto a narrativa começa com a descrição dos anseios de Poussin
antes de bater à porta do ateliê de Porbus. Não temos uma descrição física do
personagem e sim uma psicológica.
Depois de caminhar um longo tempo pela
rua com a indecisão de quem não se atreve a bater à porta de sua primeira
amante, por mais fácil que ela seja, o jovem acabou por atravessara soleira da
porta e perguntou se Mestre François Porbus estava em casa. (BALZAC, 2012,
p.13)
A descrição de Poussin é marcada por
comparações de anseios amorosos ao acentuar sua indecisão em entrar no ateliê
de Porbus, encontramos uma descrição mais psicológica do personagem, temos
acesso à sua interioridade. Todavia, a descrição de Frenhofer não segue essas
mesmas características. Enquanto sobe a escada, Poussin dá de cara com o velho
pintor e esse é descrito de maneira curiosa, apenas sua aparência nos é narrada.
Imagine uma testa alta, volumosa,
proeminente, terminando num nariz pequeno achatado e rebitado como o de
Rabelais ou Sócrates; lábios sorridentes e enrugados um queixo breve,
orgulhosamente empinado, envolto numa barba grisalha e pontiaguda; olhos de um
verde marinho, aparentemente esmaecidos pela idade mas que, em contraste com o
branco perolado no qual flutuava a pupila, no auge da cólera ou do entusiasmo
deviam por vezes lançar faíscas magnéticas. O rosto, aliás, mostrava-se
singularmente carcomido pelas fadigas da idade e mais ainda por esses
pensamentos sulcam tanto a alma quanto o corpo. Os olhos não mais tinham cílios
e mal se viam traços de supercílios acima das arcadas salientes. Ponha essa
cabeça num corpo delgado e débil, envolva-o num rendado de brancura reluzente e
trabalhada em arabescos, jogue sobre o gibão negro usado pelo homem uma pesada
corrente de ouro e terá uma imagem imperfeita desse personagem ao qual a luz
fraca vinda da escada emprestava uma cor fantástica, como se uma tela Rembrandt
caminhasse silenciosamente sem moldura na sombria atmosfera criada por esse
grande pintor. (BALZAC, 2012, p.14-15)
Podemos reconhecer uma sugestão de um
processo de pintura de algum quadro e reconhecer o próprio Frenhofer como uma
obra de arte. Primeiro, nota-se que a descrição do personagem é permeada pela
tonalidade branca, Frenhofer é descrito como envolto em luz, mesmo com a
penumbra do local. Segundo, o narrador requisita do leitor que monte o corpo de
Frenhofer, tal como um pintor ou escultor deve fazer. Por fim, o vocabulário é
abarrotado de palavras que remetem a pinturas e a elementos que fazem parte do
mundo das artes plásticas, palavras que dizem respeito à cor (esmaecidos, contraste, brancura reluzente,
luz, sombria); que dizem respeito à forma (arcadas, delgado, arabescos); entre outros elementos (sulcam – como as tintas –, tela, moldura). Entretanto, o
narrador inicia essa longa descrição com a palavra “imagine” fazendo o leitor
construir a imagem e uma expectativa desse personagem e ao final da descrição
deparamos com um “terá uma imagem imperfeita desse personagem”. Essa criação de
expectativa e o desânimo ao final parecem ser análogos à ação da narrativa. Os
mesmos sentimentos criados no leitor na descrição de Frenhofer são criados nos
personagens com a pintura desse. Então, inicialmente sugere-se que literatura e
pintura produzem o mesmo efeito.
Uma das primeiras
declarações de Frenhofer sobre o objetivo da arte é “A missão da arte não é
copiar a natureza, mas expressá-la! Você não é um vil copista, você é um
poeta!” (BALZAC, 2012, p.17). Aqui já podemos traçar uma comparação entre
pintura e literatura com a categorização de Frenhofer: o pintor é também um
poeta. Teixeira Coelho aponta em nota que “A palavra “poeta” deve ser entendida
aqui em seu sentido mais amplo de “criador” (poiesis em grego significa criação, construção, fabricação).”
(2012, p.46). No entanto, como se trata de uma obra literária passível de
múltiplas leituras, podemos ler “poeta” como um escritor de poemas. Assim,
detectamos certa superioridade da literatura perante a pintura, pois não cabe
ao pintor apenas retratar, o cabe também expressar o que retrata tal como um
poeta. O objetivo de expressar algo será um dos principais pontos da poética de
Mallarmé e do movimento Impressionista ao final do século XIX. Em uma carta de
setembro de 1864 direcionado a Henri Cazalis, médico e poeta com o qual
mantinha correspondências, Mallarmé declara que
Enfim,
comecei meu Herodias. Com terror,
porque eu invento uma nova língua que deve necessariamente surgir de uma
poética muito nova, que poderia definir em duas palavras: “Pintar não a coisa, mas o efeito que ela produz”. O verso, aqui,
não deve compor-se de palavras, mas de intenções, e todas as palavras devem
apagar-se diante das sensações ... Eu quero – pela primeira vez – conseguir. E não tocaria nunca mais numa
pena se me sentisse derrotado. (apud CAMPOS, 1987, p.18)
O vocabulário de Mallarmé é constituído
de termos referentes à pintura, tal como a descrição de Frenhofer. Mallarmé
fala de poesia, mas usa o verbo pintar ao
invés do verbo escrever. Ademais,
para o poeta as palavras devem “apagar-se diante das sensações”, isso mostra o
quão comprometido Mallarmé estava com uma nova forma poética e o quanto ela
está relacionada com a pintura. Da mesma maneira, Frenhofer anuncia o novo, que
se concretiza com o Impressionismo na pintura e o Simbolismo na poesia, não só
com sua declaração, mas também com sua pintura ao final da novella. Frenhofer continua sua digressão sobre o efeito.
Os
efeitos! Os efeitos! Mas os efeitos são os acidentes da vida, não a vida ela
mesma! A mão, já que dei esse exemplo, a mão não está ligada apenas ao corpo,
ela expressa e continua um pensamento que é preciso captar e exprimir. Nem o
pintor, nem o poeta, nem o escultor devem separar o efeito da causa, que estão
inelutavelmente mesclados! O verdadeiro combate está aí. (BALZAC, 2012, p.19)
Visivelmente,
Frenhofer assinala a importância do efeito nas artes, não somente na pintura.
Quando o personagem exemplifica seu pensamento com a mão, o faz significando
tanto a mão desenhada ou esculpida quanto a mão que pinta, esculpe ou escreve.
O personagem chega dessa maneira à uma noção do belo.
O belo é uma coisa austera e difícil
que não se deixa apreender assim; é preciso respeitar seu tempo, observá-lo,
estreitá-lo e abraça-lo estreitamente para força-lo a entregar-se. A forma é um
Proteu bem mais inalcançável que o Proteu da lenda. Só após demorados combates
é possível obrigá-la a mostrar-se em seu verdadeiro aspecto. (BALZAC, 2012,
p.19)
Nesse
excerto, o personagem lança mão do mito de Proteu, divindade ligada à
metamorfose, para definir a forma. Porém o aspecto que se sobressai na sua
noção do belo é o tempo, Frenhofer incorpora a espera e a paciência ao trabalho
do artista e a seguir acusa Porbus de apressado.
Vocês, vocês se contentam com a
primeira aparência que a forma oferece, no máximo com a segunda ou a terceira;
não é assim que agem os combatentes que saem vitoriosos! Os pintores invictos
não se deixam enganar por esses subterfúgios todos; perseveram até que a
natureza seja reduzida ao estado de mostrar-se inteiramente nua e em seu
verdadeiro ânimo. (BALZAC, 2012, p.19)
Mesmo usando o pronome impessoal vocês, há uma acusação dissimulada a
Porbus nas palavras de Frenhofer. Porém,
como o final da narrativa revela, Frenhofer não sai vitorioso do seu
combate com a obra, perece junto com o seu trabalho de dez anos.
Por fim, Frenhofer destaca que a
pintura há de ter vida, mais especificamente, sangue deve correr por entre as
veias do retrato e deve ter ar para respirar. Frenhofer novamente acusa Porbus,
“Vocês fazem, para suas mulheres, belos vestidos de carne, belos drapeados de
cabelos, mas onde está o sangue que engendra a calma ou a paixão e que provoca
efeitos singulares?” (BALZAC, 2012, p.20). Mais uma vez, assinala a importância
do efeito e que esse vem com o sangue que deve dar vida à mulher retratada.
Mais adiante na narrativa, Frenhofer pega a paleta de cores para consertar a
pintura de Porbus, enquanto o faz declara
“Veja isto, rapaz”, disse o velho sem
se virar “está vendo como três ou quatro toques e um pequeno esfumado podem
fazer o ar circular ao redor da cabeça desta pobre santa que devia estar
sufocando, envolta nessa atmosfera pesada? Veja como este drapeado agora
balança e como percebemos que a brisa o levanta! Antes ele parecia um pano
engomado preso por alfinetes. Repare como o acetinado reluzente que coloco no
peito dela evidencia a plasticidade untuosa da pela de uma jovem e como este
tom de marrom avermelhado e ocre calcinado esquenta a frieza cinzenta desta
grande sombra na qual o sangue se imobilizava em vez de correr. [...]” (BALZAC,
2012, p.22)
Além
do sangue é necessário ar para dar vida à santa retratada e em defesa do ar que
circunda a santa, Frenhofer ataca de certa maneira a escola florentina ao
denegrir o uso da linha.
Ao contrário dessa turba de ignorantes
que pensam desenhar corretamente apenas por serem capazes de fazer um traço
correto, nunca acentuei cruamente os limites externos de meus rostos e nunca
ressaltei os pequenos detalhes anatômicos, já que o corpo humano não termina
numa linha. Nisso os escultores se aproximam mais da realidade do que nós,
pintores. (BALZAC, 2012, p.26)
Segue
descrevendo as modificações que fez defendendo a importância da luz e da sombra
na pintura.
A linha é o meio pelo qual o homem
representa o efeito da luz sobre os objetos. Mas na natureza, onde tudo é
plenitude, não existem linhas; é modelando que se desenha, quer dizer, que se
isola uma coisa do meio onde ela está. A distribuição da luz é que dá forma ao
corpo! (BALZAC, 2012, p.26)
Novamente
parece prever o Impressionismo e o Simbolismo ao fazer necessário tomar
distância da obra para que ela tome vida e movimento. Para reforçar tal
característica, Frenhofer ainda declara que “De perto, o trabalho parece
borrado e carente de precisão mas a dois passo de distância tudo se reforça, se
imobiliza e se destaca; o corpo gira, as formas tornam-se salientes, sente-se o
ar circulando ao redor do rosto.”
Desse
modo, temos uma amostra dos ideais que prega Frenhofer, algo próximo da escola
veneziana valorizando a cor, a luz e a sombra, e que ainda de alguma maneira
prenuncia o impressionismo só final do século XIX.
AS FRONTEIRAS DE LESSING
Para Da Vinci, a paragone entre poesia e pintura resulta na vitória da pintura.
Existe uma tal proporção entre a
imaginação e o efeito, como existe entre a sombra e o corpo que gera a sombra.
E a mesma proporção existe entre a poesia e a pintura porque a poesia usa
letras para pôr as coisas na imaginação e a pintura as põe efetivamente diante
dos olhos, de modo que o olho recebe as semelhanças como se elas fossem
naturais; e a poesia nos dá o que é natural sem essa similitude e [as coisas]
não passam para a impressiva pela via da virtude visual como na pintura.” (apud
SELIGMANN-SILVA, 2011, p.11)
Discutindo também essa paragone em seu livro Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura
e da poesia, Lessing define a clássica diferente entre pintura e poesia,
aquela se dá no espaço e essa no tempo. O autor apresenta essa diferenciação na
seção XVI de seu livro.
Eu argumento assim: Se é verdade que a
pintura utiliza nas suas imitações um meio ou signos totalmente diferentes dos
da poesia; aquela, a saber, figuras e cores no espaço, já esta sons articulados
no tempo; se indubitavelmente os signos devem ter uma relação conveniente com o
significado: então signos ordenados um ao lado do outro também só podem
expressar objetos que existam um ao lado do outro, ou cujas partes existam uma ao
lado da outra, mas signos que se seguem um ao outro só podem expressar objetos
que se seguem um ao outro ou cujas partes se seguem uma à outra. (LESSING, 2011,
p. 195)
Definitivamente,
essa é a distinção mais discutida do livro de Lessing, pintura-espaço e
poesia-tempo. Portanto, cabe à pintura o corpo e à poesia as ações. Porém, não
é exclusivo o corpo da pintura nem as ações da poesia. Lessing dá continuidade
a seu pensamento.
Contudo, todos os corpos não existem
apenas no espaço mas também no tempo. Eles perduram e podem parecer diferentes
e se encontra numa outra relação em cada momento da sua duração. Cada uma
dessas aparições momentâneas e relações é o efeito de uma anterior e pode ser a
causa de uma sucessiva e, assim, como que o centro de uma ação.
Consequentemente a pintura também pode imitar ações, mas apenas alusivamente
através de corpos. (LESSING, 2011, p. 195)
Da
mesma maneira, confere o corpo à poesia.
Por outro lado, as ações não podem
existir apenas por si mesmas, mas dependem de certos seres. Na medida em que
esses seres são corpos ou são observados como corpos, a poesia também expõe
corpos, mas apenas alusivamente através de ações. (LESSING, 2011, p. 195)
No
entanto, se a tentativa de Lessing é traçar as fronteiras das duas artes possa
parecer uma quebra com a paragone anunciada
por Da Vinci, o autor não deixa de professar sua preferência ao apresentar uma
possibilidade adicional a uma das artes.
Zeuxis pintou uma Helena e teve a
coragem de pôr sob ela aquelas famosas linhas de Homero nas quais os anciões
encantados confessam o sentimento deles. A pintura e a poesia nunca foram
postas numa competição semelhante. A vitória não foi decidida e ambas merecem
ser coroadas.
[...] A sua pintura consistia apenas da
figura de Helena, de pé e nua. [...]
Compare-se por curiosidade a pintura
que Caylus prescreve ao artista moderno a partir daquelas linhas de Homero:
“Helena coberta com um véu branco surge entre diferentes idoso, entre os quais
encontra-se não apenas Príamo que pode ser reconhecido pelos signos de sua
dignidade real [...].”
Qual mostrará o verdadeiro triunfo da
beleza? Essa na qual eu mesmo o sinto ou aquela na qual eu devo inferir a
partir das caretas dos barbas-grisalhas comovidos? “Turpe senilis amor” [o amor senil é torpe]; um olhar cobiçoso torna
ridículo o rosto mais venerável e um idoso que trai ânsias juvenis é até mesmo
um tema asqueroso. Essa censura não pode ser direcionada aos anciões de Homero;
pois o sentimento que eles sentem é uma faísca momentânea que a sua sabedoria
logo apaga; destinada apenas a honrar Helena e não a desonrá-los. (LESSING,
2011, p.245-6)
Apesar
de declarar que “ambas merecem ser coroadas” ao discutir esse episódio, Lessing
oferece uma censura à pintura prescrita por Caylus por apresentar o feio, no
caso os olhares dos anciões. Portanto, o triunfo da poesia se dá pela
possibilidade de representação do feio, já a pintura seria censurada caso o
representasse.
Portanto,
Lessing anuncia a vitória da poesia, talvez não intencionalmente, com a
possibilidade de representação do feio. Mas quanto ao texto de Balzac, há
vitória de alguma das artes?
BALZAC E LESSING
No
texto de Balzac, a única pintura real que encontramos é a de Henrique IV citada
brevemente pelo narrador no inicio da história, não há registro da pintura de
Porbus que Frenhofer “conserta” e assina. Obviamente, isso se dá pelo fato de
que Frenhofer não é um pintor real. Porém, temos descrições do quadro de Maria
de Médicis e do de Catherine Lescault. Cabe a pergunta: qual seria o efeito se
essas pinturas realmente existissem?
Provavelmente,
o leitor não teria tanta interação com o texto na tentativa de preencher as
lacunas deixadas por essas obras, como elas não existem, triunfa a imaginação
do leitor, que para Da Vinci é inferior à virtude da visão. Portanto, se
houvessem pinturas, elas seriam superiores ao texto de Balzac, dado que elas
estivessem em mãos de grandes artistas. Com essa suposição, a superioridade da
pintura surge com o fato de que uma descrição de uma pintura não poderia dar
conta da pintura, apenas de seus efeitos.
[...] muitos termos cruciais numa
descrição são um pouco indiretos, porque em vez de se referirem, antes de tudo,
ao quadro como um objeto físico, referem-se ao efeito que ele produz em nós, ou
a outros coisas que poderiam ter um efeito comparável sobre nós, ou ainda às
supostas causas de um objeto que produzisse um nós mesmos o mesmo efeito que o
quadro. (BAXANDALL, 2006, p.44)
Como
discute Michael Baxandall, o que se pode alcançar com a descrição é somente o
efeito e não a pintura. No entanto, não é esse o objetivo que prega Frenhofer?
Se
para Frenhofer o objetivo da arte é expressar a natureza e não copiá-la, não
haveria vitória entre as hipotéticas pinturas e o texto de Balzac, pois
deveriam ser abordadas como complementares e não combatentes. Mesmo que Da
Vinci considere a visão como virtude maior que a imaginação, no trecho citado
anteriormente ele afirma que a pintura coloca as coisas “como se” fossem
naturais aos olhos, já para a poesia ele parece mais peremptório ao afirmar que
ela “nos dá” o natural sem a similitude. Ora, se poesia não é um “como se”,
pode-se afirmar que triunfa em expressar a natureza ao passo que não tem
intenção de semelhança, como teria a pintura, mas tem a intenção de entregar a
natureza e o faz por meio de signos que não imitam visualmente a realidade,
apenas incitam imagens subjetivas dessa. Tal discussão tem um teor mais
provocativo, mas acreditamos que aponta para problemáticas que podem surgir do
texto de Balzac em relação à literatura e à pintura.
Outro
quadro que se encontra no texto de Balzac é o próprio Frenhofer, descrito como
uma pintura, como saindo de uma moldura. A descrição declara ser imprecisa, mas
apresenta Frenhofer como um sujeito velho, um tanto decadente e de aparência
doentia. Para Lessing, a pintura não tem compromisso com o feio, ao passo que a
poesia pode tê-lo, portanto a descrição de Frenhofer pode ser considerada um
belo exemplo poético, caso fosse uma pintura seria censurada.
Ainda
assim, a descrição de Frenhofer causa um efeito interessante no leitor, pois
faz jus ao caráter exagerado do personagem, é um velho imponente, misterioso e
fantástico que professa a vida na arte. Além do mais, o processo de montagem
pelo qual Balzac faz o leitor passar, construindo o corpo de Frenhofer em um parágrafo,
cria uma expectativa na leitura, a montagem guiada pelos olhos de Poussin, um
pintor, o efeito é o de estar olhando para um quadro, mesmo que descrito, aqui
os verbos indicam ações (imagine, ponha,
envolva), o parágrafo não parece ser mera descrição, o efeito criado é o de
um pintor desenhando um corpo, se se tratasse de uma pintura o corpo se daria
no espaço e não no tempo, como discute Lessing. Portanto, a imagem se dá no
tempo ao aludir um corpo.
Frenhofer
é um personagem fictício, mas a narrativa de Balzac o dá vida tal como o
próprio personagem professa que deve haver na pintura, ela há de ter sangue, há
de respirar, devemos poder contorná-la. Tudo isso pertence à Frenhofer, se não
em sua Catherine Lescault, nele mesmo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Primeiro,
apresentamos alguns trechos da novella
de Balzac a fim de conhecer o pintor criado pelo autor, um pintor que professa
ideais artísticos para a pintura, que ao fim da narrativa se transforma muito
mais em um teórico ou um professor do que um pintor, pois pregou mais do que
pôde fazer. Segundo, uma exposição do ponto mais discutido em Lessing sobre a
relação entre as artes com o objetivo de explicitar o pensamento do autor para
em seguida fazer uma tentativa de relação com o livro de Balzac. Essa tentativa
possui um teor provocativo, pois as pinturas apresentadas no livro de Balzac
não são reais, ao passo que Lessing lida com comparações de pinturas que remetem
ao texto de Homero, criando assim uma relação mais próxima entre as artes. Por
fim, a conclusão que se chega é de que Balzac através da boca de Frenhofer
considera o efeito, não a imitação, o objetivo das artes, seja da pintura ou da
literatura
O texto de Balzac sobre pintores e
pinturas é um ótimo exemplo de narrativa para tratar da relação entre artes,
mesmo que de forma breve como apresentado aqui, pode-se levantar diversas
questões referentes a essa relação.
A epígrafe desse texto foi retirada de Timon of Athens, de Shakespeare e
Middleton, trata-se de uma fala do Poeta na primeira cena sobre pintura. Isto
posto, os toques que fazem do artificial mais vivo que a vida, como declara o
Poeta, também se aplicam à literatura, como nos mostrou Balzac.
REFERÊNCIAS
BALZAC, H. A obra-prima ignorada. São Paulo: Iluminuras, 2012.
BAXANDALL, M. Padrões de Intenção:
a explicação histórica dos quadros.
Trad. Vera Maria Pereira. São Paulo: Cia. das Letras, 2006.
CAMPOS, Augusto de. Linguaviagem. São Paulo: Cia das Letras, 1987
COELHO, T. Entre a vida e a arte. In: BALZAC, H. A obra-prima ignorada. São
Paulo: Iluminuras, 2012.
LESSING, G.E. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura
e da poesia. Trad. Márcio
Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 2011.
SELIGMANN-SILVA, M.
Introdução/Intradução: Mimesis, Tradução,
Enárgeia e a Tradição da ut pictura poesis. In: LESSING, G.E. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura
e da poesia. Trad. Márcio
Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 2011.