COSTA, Taniza Andrades da [1]
PEREIRA, Isabele Corrêa Vasconcelos
Fontes [2]
Crime
e Castigo, publicado em 1866, é certamente uma obra prima da literatura
e uma das maiores criações do escritor russo Fiódor Dostoiévsky. Narra a
história de um assassinato de uma velha usurária por um ex-estudante de
Direito, que serve de simples pano de fundo para Dostoiévski percorrer todos os
recessos da mente do ser humano e analisar de forma magistral sua psicologia. Através
de Ródion Raskólnikov – o protagonista, o autor coloca o leitor diante de uma
completa narração e descrição dos bastidores de um assassinato. A forma como a
personagem é construída na trama permite que qualquer ser humano se identifique
com os seus dramas pessoais, visto que privilegia a reflexão de temas universais, tais como a função dos
sujeitos na sociedade, seu comportamento enquanto humanos e a tênue diferença
entre certo e errado, razão e loucura. Nesta perspectiva, discutiremos,
neste trabalho, o conceito de realismo formal – característica incorporada ao
romance, a partir do século XVIII; analisando, assim, a construção humana do
protagonista – Raskólnikov, pelo narrador. Tomaremos, para isso, como
referencial teórico, as proposições de Ian Watt, em A Ascensão do Romance (1990), entre outros autores que discutem aspectos
relativos à forma literária romance.
Palavras-chave:
Romance; Mimese; Narrador; Realismo Formal, Condição Humana.
LA CONSTRUCCIÓN DE LA CONDICIÓN HUMANA DEL PERSONAJE RASKÓLNIKOV EN CRIMEN Y CASTIGO, DE FIÓDOR DOSTOIÉVSKY
RESUMEN
Crimen y Castigo, publicado en 1866, es sin duda una obra maestra
de la literatura y una de las grandes creaciones del escritor ruso Fiódor
Dostoievski. Cuenta la historia de un asesinato de una anciana propietaria de
una casa de empeños por un ex estudiante de Derecho, que sirve como un simple
telón de fondo para Dostoievski cruzar todos los recovecos de la mente del ser
humano y analizar de manera magistral su psicología. Por Rodion Raskolnikov -
el protagonista, el autor pone al lector en una completa narración y descripción
de lo que hay detrás de una escena de crimen. La forma en que el personaje está
construido en la narrativa permite a cualquier ser humano identificarse con sus
dramas personales, ya que favorece la reflexión de temas universales como el
papel de los individuos en la sociedad, su comportamiento como ser humano y la sutil
diferencia entre el bien y el mal, la razón y la locura. En esta perspectiva,
se discute en este trabajo, el concepto de realismo formal, - característica
incorporada en la novela, a partir del siglo XVIII; analizando así la
construcción humana del protagonista - Raskolnikov, por el narrador. Vamos a
tomar, para ello, como referente teórico, las proposiciones de Ian Watt, en A Ascensão do Romance (1990), entre
otros autores que tratan sobre aspectos relacionados con la forma literaria novela.
Palabras clave: Novela; Mimesis; Narrador; Realismo Formal, Condición Humana.
INTRODUÇÃO
Dostoiévisky apresenta seu protagonista
– Raskólnikov, como um jovem com ambições que não podem ser realizadas, devido
à sua condição econômico-social. É um ex-estudante, pois a falta de recursos o
obrigou a abandonar a universidade. Mora em um quarto alugado, mas há alguns
meses já não tem como pagar o aluguel e, por conta disso, a senhoria não mais
lhe fornece as refeições. Às vezes, a mãe lhe envia uma pequena quantia, o que
lhe deixa ainda mais constrangido de sua miséria; visto que o dinheiro provém
de uma pequena pensão.
A situação de Raskólnikov chega ao seu
limite, quando este recebe uma carta da mãe, comunicando-lhe que sua irmã
pretende casar-se com um senhor influente e financeiramente estável. Nas
palavras da mãe, o protagonista percebe a intenção da irmã de resolver os
problemas de ordem econômica da família, através de um casamento com um homem
de negócios. Quando saíra de sua pequena cidade para ir estudar em São
Petersburgo, Raskólnikov representava a esperança de sua família melhorar de
vida.
Agora que a irmã tinha planos de ela
mesma dar um fim aos sofrimentos dos três, se atormenta por pensar que quem
devia encontrar uma solução era ele; que ela não merecia submeter-se a um
casamento por necessidade. Raskólnikov começa, então, a dar um caráter prático
à sua teoria: a morte de alguém sem grande influência na sociedade não deve ser
considerada um crime, desde que beneficie de alguma forma um grande número de
pessoas, como fez Napoleão. A partir dessa formulação, decide matar a velha
usurária, que ele considera um “piolho”, a fim de “garantir seus primeiros
passos na vida”.
A história do assassinato e suas
repercussões são contadas, a partir de um narrador em terceira pessoa que,
apesar de sua onisciência, não interfere na trama com o objetivo de influenciar
o posicionamento do leitor. O narrador, na sua condição de aparente
neutralidade discursiva, consegue fazer com que até o fim do romance o leitor
nem sequer tenha pensado se admira ou se reprova o comportamento da personagem
central, a qual nos dedicaremos neste estudo. Isso se deve ao fato de que a
análise psicológica de Dostoiévski construiu sua personagem não como um ser
humano atípico, mas o fez a partir de componentes que constituem todos os seres
humanos, como o orgulho e a culpa.
Nesse sentido, é relevante discutir os
recursos narrativos utilizados pelo autor para fazer de Raskólnikov não apenas
o protagonista de um romance, mas uma personagem dotada de características tão
humanas, que seus conflitos e anseios se confundem com os do leitor. Essa identificação vai ao ponto de o leitor
não conseguir julgar o comportamento da personagem, em função de perceber o
quanto estas inquietações também o afetam.
Para isso, analisaremos a posição do
narrador, destacando os efeitos narrativos da onisciência de uma narração em
terceira pessoa, que pretende mostrar-se neutra. Após, faremos um apanhado dos
elementos da constituição da personagem Raskólnikov, que lhe conferem um
estatuto essencialmente humano, observando seu desenvolvimento ao longo da
história. Esse esforço de buscar no protagonista o seu realismo, pretende
responder a pergunta: Por que Crime e
Castigo (2010) pode ser considerado um clássico e por que ainda é lido
depois de mais de cem anos desde sua publicação?
A análise da construção humana da
personagem será feita, a partir das considerações sobre o conceito de realismo
formal de Ian Watt (1990); as formulações de Walter Benjamin sobre o narrador;
além de contar com as contribuições de Georg Lukács (2000) para fundamentar
nosso estudo, no que se refere à forma literária romance.
EVOLUÇÃO DO GÊNERO
NARRATIVO: DA EPOPEIA AO ROMANCE
Como afirma Benjamin (1994, p. 197),
“são cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente”. Nessa
perspectiva, o teórico trata a narrativa como a arte de contar histórias
oralmente; em que o narrador é o contador de histórias. Ele observa as
características do narrador, a partir do resgate da história da evolução do
gênero narrativo, desde a epopeia clássica até o surgimento do romance.
Sabendo-se que Aristóteles, na Poética
Clássica (2014), propõe a divisão
tripartida dos gêneros literários clássicos, classificando-os em lírico, épico
e dramático – conforme nomenclatura atual; Benjamin (1994) toma a epopeia como
ponto de partida para sua análise da evolução do narrador.
Segundo ele, as narrativas do período
clássico eram projetadas para a memorização, visto que seriam contadas
oralmente e havia o objetivo de que elas fossem reproduzidas pelos ouvintes. A
construção em verso da epopeia e a metrificação são exemplos deste esforço,
pois para Benjamin “contar histórias sempre foi a arte de conta-las de novo”
(1994, p. 205). Com o processo de individualização propiciado pela modernidade,
já não há um público que se reúne para ouvir histórias. Na era moderna, a experiência
coletiva dá lugar ao individualismo, à valorização da subjetividade.
Na forma como é organizado e composto o
universo épico na narrativa, não há ênfase para a subjetividade, ou para a
exploração do caráter pessoal dos indivíduos épicos. Na epopeia o herói não
representa o indivíduo em seu isolamento, mas àquele cujo objetivo aponta para
a coletividade. Os anseios do herói confundem-se com os da sua comunidade, pois
sua referência é ela e ele é seu eco. “É um mundo homogêneo, e tampouco a
separação entre homem e mundo, entre eu e tu é capaz de perturbar sua homogeneidade”
(LUKÁCS, 2000, p. 29).
Observando
as concepções expressas por Lukács, na Teoria
do Romance (2000), para o teórico, o romance surge da dissolução da
narrativa medieval. No entanto, é somente no século XIX que o romance se
legitima como nova e moderna configuração do gênero narrativo, tendo como
centro a sociedade burguesa e seus dilemas, “pois a forma do romance, como
nenhuma outra, é uma expressão do desabrigo transcendental” (LUKÁCS 2000, p. 38).
As
condições sociais que permitiram a ascensão do romance inglês foram analisadas
por Ian Watt (1990), tendo como objetos de pesquisa as obras de Defoe,
Richardson e Fielding. Com esse estudo, Watt (1990) conclui que o realismo
filosófico de Descartes e Locke, a secularização da sociedade, a ascensão da
classe média e o individualismo econômico foram os elementos que favoreceram o
surgimento de uma estética “realista” e subjetiva do romance. De acordo com o
autor:
As
formas literárias anteriores refletiam a tendência geral de suas culturas a conformarem-se
à prática tradicional do principal teste da verdade: os enredos da epopeia
clássica e renascentista, por exemplo, baseavam-se na História ou na fábula e
avaliavam-se os méritos do tratamento dado pelo autor segundo uma concepção de
decoro derivada dos modelos aceitos no gênero. O primeiro grande desafio a esse
tradicionalismo partiu do romance, cujo critério fundamental era a fidelidade à
experiência individual – a qual é sempre única e, portanto, nova. (WATT, 1990,
p. 15)
Dessa
maneira, as personagens da trama deveriam ser apresentadas, a partir de nova
concepção de literatura. Seriam descritas e tratadas como pessoas específicas
em circunstâncias específicas, ao contrário da epopeia que apresentava tipos
humanos representantes de uma comunidade. O romance dispensaria, assim, uma
grande ênfase à particularização da personagem. Watt exemplifica este elemento
do romance, através do conceito de realismo formal:
O método narrativo pelo qual o
romance incorpora essa visão circunstancial da vida pode ser chamado seu
realismo formal; [...] o realismo formal é a expressão narrativa de uma
premissa [...] de que o romance constitui um relato completo e autêntico da
experiência humana e, portanto, tem a obrigação de fornecer ao leitor detalhes
da história como a individualidade dos agentes envolvidos, os particulares das
épocas e locais de suas ações - detalhes que são apresentados através de um
emprego da linguagem muito mais referencial do que é comum a outras formas
literárias. (WATT, 1990, p. 31)
Essas
mudanças na forma de narrar não são resultado apenas de um esforço teórico por
uma inovação literária do gênero narrativo. É a alteração na forma de ver o
mundo e de perceber sua experiência nele; propiciada pela modernização trazida
pelas tecnologias, que faz com que as sociedades mudem sua configuração
original e assumam novas formas. A literatura como expressão de uma sociedade
obviamente muda no mesmo sentido. Nessa perspectiva,
Os novos estilos, os novos modos de
representar a realidade, não surgem apenas de uma dialética imanente das formas
artísticas; todo novo estilo surge como uma necessidade histórico-social da
vida e é um produto necessário da evolução social. (LUKÀCS, 1968, p. 57).
Assim,
surgem, pois, as primeiras obras do romance, condicionadas pela nova
experiência social, econômica, religiosa e moral que o século XVIII propiciou
aos autores e seus respectivos leitores.
O
REALISMO FORMAL NA CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM RASKÓLNIKOV, NO ROMANCE CRIME E CASTIGO, DE DOSTOIÉVISKY
Para
Kant o julgamento estético é essencialmente subjetivo. Ginzburg (2008) afirma
ainda que “o valor é uma atribuição historicamente construída”, ou seja, é
circunstancial. No entanto, costumamos considerar apenas algumas obras como
“clássicas”. Crime e Castigo (2010),
de Dostoiévsky, é um exemplo disso. Uma acepção coerente que explica o que é uma
obra clássica propõe que “um clássico transcende todos os paradoxos e tensões:
entre o individual e o universal, entre o atual e o eterno, entre o local e o
global, entre a tradição e a originalidade, entre a forma e o conteúdo”
(COMPAGNON, 1999, p. 235).
Tomando
essa definição como norteadora deste trabalho, podemos dizer que Crime e Castigo (2010) merece seu lugar
na estante das obras clássicas. Isso por que os dilemas tratados na obra, a
partir do indivíduo, são dilemas universais e as mazelas, retratadas numa época
muito anterior, ainda perduram. Além disso, a representação de um contexto
socioeconômico, religioso e moral que tem sua correspondência em quase todo o
globo terrestre, faz com que esse romance continue provocando nos seus leitores
a mesma identificação e reflexões muito semelhantes às dos primeiros leitores.
A
personagem central da obra, Raskólnikov, individualizada nos moldes da estética
do romance, consegue representar um ser humano em qualquer lugar do mundo e em
qualquer momento histórico, visto que está revestida de aspectos puramente
humanos em sua construção, de modo que o leitor materializa a personagem em si
mesmo. Aristóteles relaciona o conceito de
mímese à imitação das essências do mundo. De acordo com o postulado
aristotélico, a criação artística implicaria em um profundo conhecimento da
natureza humana.
Assim, o autor faz uma representação minuciosa não só das
ações da personagem, como de todo seus processos mentais para compor uma obra
mais que verossímil – uma obra realista, no que se refere a uma
imitação/representação mais precisa da experiência individual, situada em
contextos definidos de tempo e espaço. Em Crime
e Castigo (2010), o autor começa por dar ao seu protagonista um nome, dois
sobrenomes e ainda uma forma familiar e carinhosa, que sua mãe utiliza para
referi-lo.
Esse
é um recurso narrativo pelo qual “o romancista tipicamente indica sua intenção
de apresentar uma personagem como indivíduo nomeando-a da mesma forma que os
indivíduos particulares são nomeados na vida real” (WATT, 1990:19). A descrição
detalhada das condições circunstanciais constitui também um instrumento
narrativo do romance, a fim de lograr o realismo pretendido na sua
representação, de modo que “a definição social dos personagens é agora o
critério da sua realidade e verossimilhança e os problemas sociais de sua vida,
pela primeira vez, são assuntos adequados ao novo romance” (HAUSER, 1988, p.
906, v. 2).
Dessa
forma, Dostoiévski faz questão de mostrar cada aspecto da realidade de
Raskólnikov, com o intuito de expor ao leitor todas as dimensões da personagem,
a partir de diferentes ângulos de percepção. Primeiramente, ele mostra a
situação econômica do protagonista:
A água-furtada
ficava no alto uma casa enorme de cinco andares, e parecia mais um armário do que
um cômodo habitável. (...) toda vez que saísse, tinha de passar pela frente da
cozinha, cuja porta, geralmente escancarada, dava para a escada. Nessas
ocasiões, sua expressão se contraía e vinha-lhe, sempre, aquela sensação
mórbida de pavor, que o humilhava (DOSTOIEVSKI, 2010, p.11).
O
local é apertado e o ex-estudante foge do encontro com a senhoria, em função
dos meses de aluguel em atraso. O que fica evidente nesse trecho é o ambiente
em que o protagonista vive e a descrição da implicação deste na sua
personalidade e psicologia. A seguir, outro quadro relevante é a exposição do
estado de espírito de Raskólnikov, diante das condições de vida precárias em
que ele e a família se encontravam.
Não
que fosse, afinal, um desanimado ou um fracassado na vida. Pelo contrário.
Acontece que se achava, de uns tempos para cá, num estado de tensão e de
irritação permanente que tocava, quase, os limites da hipocondria. Habituara-se
a viver tão recolhido em si mesmo, e tão isolado, que passou, então, a temer –
não só o encontro com a locatária como o aproximar-se de quem quer que fosse. A
pobreza o esmagava. (DOSTOIEVSKI, 2010, p.11)
Baseado na análise profunda do
comportamento do protagonista, com relação às suas experiências, o autor
demostra, a partir das alterações emocionais e de caráter deste, os motivos que
justificam suas atitudes e sua forma de compreender o mundo. Sua intenção está
longe de querer retratar a bem-sucedida adaptação do indivíduo à sociedade,
como fazia a epopeia clássica. Ao contrário, pretende mostrar a mortificação do
indivíduo pela sociedade (WATT, 1990, p. 289).
Quando descreve a reação de Raskólnikov,
enquanto este se prepara para cometer o crime – por não encontrar alternativa
para sua situação miserável, o autor coloca o protagonista num duelo entre o
que ele é e o que ele precisa fazer para sobreviver. Um conflito constante na
narrativa que permeia toda a obra é a incerteza entre o que é necessário e o
que é permitido naquela sociedade. A personagem central não é um criminoso
nato: é um ser humano esmagado pela miséria, sem perspectiva de dias melhores.
Por isso, toda trama está repleta de monólogos interiores, que põe em questão o
caráter da personagem em contraponto com seu comportamento.
Senhor,
poderá ser, mas será que posso pegar, de verdade, num machado para esmigalhar-lhe
o crânio? Será possível que eu possa lavar-me em sangue quente, viscoso, que eu
force uma fechadura, roube, trema e me esconda todo ensanguentado... com o
machado? Mas meu Deus, isso será possível? (DOSTOIEVSKI, 2010, p.88)
Assim o romance explora o que se passa
na mente de Raskólnikov, desde quando o crime era apenas uma teoria, até o
momento em que ele consuma o seu plano. Depois do crime cometido, as
especulações giram em torno de sua culpabilidade e da forma como ele justifica
seu ato desesperado, pois “o romance é com frequência a história de um
indivíduo que busca um sentido que não há, é a odisseia de uma ilusão” (MAGRIS
apud MORETTI, 2009, p. 1018). No romance o indivíduo aparece inseguro de suas
certezas, inclusive, quanto à sua própria identidade – ele representa “um
observatório da incerteza, da indeterminação, do caos probabilístico que marcam
a civilização contemporânea” (MAGRIS apud MORETTI, 2009, p. 1023). “Por que
pensar nisso?”, continua, num tom de profunda surpresa. “Bem sabia que não seria
capaz de tal coisa. Por que, pois, atormentar-me assim?” (DOSTOIEVSKI, 2010, p.
88).
Quando o protagonista mata a usurária,
há uma oscilação muito frequente de seu estado mental. Em pequenos intervalos
de tempo sua lucidez dá lugar a uma espécie de alienação. É como se a
personagem perdesse o controle sobre sua própria consciência. O discurso
indireto livre possibilita ao narrador mostrar tanto o que a personagem fala
quanto o que ele pensa, de modo que podemos ter acesso a todos as nuances de
seu raciocínio. Assim, quando o
protagonista tenta limpar seu machado em um pano vermelho, a fim de que o
sangue não apareça, o narrador apresenta o pensamento de alguém que está
aparentemente calmo. No entanto, em seguida, notamos que Raskólnikov passa a se
preocupar com a possibilidade de loucura e parece estar transtornado.
Começou
por limpar as mãos ensanguentadas no pano vermelho. “É vermelho: o sangue deve
ser menos visível sobre vermelho”, pensou e, de súbito, conteve-se: “Senhor,
será que enlouqueci?”, conjeturou, amedrontado. (DOSTOIEVSKI, 2010, p. 113)
De repente, toda essa racionalidade,
embora já não tivesse em seu pleno desempenho, desaparece por alguns momentos.
A forma como é narrada essa ausência de consciência pode parecer, para um
leitor desatento, um espécie de tranquilidade alcançada por Raskólnikov, após o
assassinato. Mas esse comportamento reflete os sintomas colaterais de sua ação,
são indícios do sofrimento que começa a vivenciar. Ele acreditava que poderia
matar a velha usurária em razão de um bem maior, mas não contava com a
possibilidade de ter de matar também a irmã da velha. Por essa razão, ele tem
lapsos de memória, delírios e, muitas vezes, parece estar agindo
irrefletidamente.
Todavia
seu espírito, pouco a pouco, deixava-se dominar por outros pensamentos. Chegou
mesmo a entregar-se a uma espécie de devaneio: por momentos, parecia esquecer-se
ou, antes, esquecer mesmo as coisas essenciais para apegar-se a ninharias. Entretanto,
olhando de relance a cozinha e descobrindo, em cima de um banco, um balde quase
pela metade, teve a ideia de lavar as mãos e o machado. (DOSTOIEVSKI, 2010, p.
115)
Explorando as dobras da consciência do
protagonista - Raskólnikov, Dostoiévsky, por meio de um realismo de
apresentação muito bem desenvolvido, consegue construir uma personagem tão
humana como qualquer um de seus leitores. Alguém que está sempre se
equilibrando entre as escolhas e as consequências; que tenta justificar os
meios pelo fim; que vive atormentado pelo que acredita e pela forma como as
coisas são tratadas na sua sociedade; que já não consegue vislumbrar a tênue
diferença o lícito e o conveniente, entre a razão e a loucura. Enfim, um ser
humano comum, com vícios e virtudes. Isso basta para justificar o lugar de Crime e Castigo (2010) na lista das
grandes obras da literatura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após analisar os recursos narrativos que
propiciaram a construção da condição humana da personagem Raskólnikov,
percebemos que Dostoiévski utilizou elementos
linguísticos como narrador em terceira pessoa onisciente e com tom de
neutralidade, a descrição
minuciosa do espaço e lançou mão do discurso direto e indireto livre,
que altera alternadamente a distância entre o narrador e a personagem, a fim de
torná-la verossímil. O
narrador é, assim, a peça fundamental posta em funcionamento na trama, pois é
por meio dele que o leitor obtém uma imagem das personagens, do ambiente e da
narrativa como um todo.
Esse
cuidado na elaboração do texto é imprescindível para a obtenção de uma
apresentação realista dos fatos e personagens, ou seja, fazer com que a
história pareça real, nos moldes estéticos do romance. Raskólnikov é, sem dúvida, um dos mais celebrados heróis de romance,
desde a publicação de Crime e Castigo (2010).
Dostoiévisky concebeu Raskólnikov com um estilo de personagem que difere em
todos os aspectos dos típicos heróis épicos. Os heróis da epopeia clássica
lutavam contra o mal, as personalidades eram perfeitas, eram sempre boas
pessoas que buscavam um bem comum.
Raskólnikov, no entanto, contradiz toda essa “harmonia com o
universo”: é pobre, ambicioso, é impiedoso, ao mesmo que tempo age com muita
piedade; às vezes se comporta como uma boa pessoa e outras com nenhuma bondade;
por vezes é egoísta, outras vezes é imensamente generoso. Isso evidencia que ele não é mau nem bom, ele tem
ambas as características, como todos os seres humanos, um misto de bondade e maldade
convivendo em constante conflito. É essa simultaneidade de comportamento e de
caráter que faz com que a personagem central da trama seja sentida pelo leitor
não apenas como personagem de ficção, mas como um ser humano tal qual ele
mesmo, devido ao grau de subjetividade e particularização a ela dispensada no
romance.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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Walter. Magia e técnica arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso
comum. Trad. Cleonice Paes Barreto Mourão. Ed. UFMG. Belo Horizonte: 1999.
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HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte.
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LUKÁCS, Georg. Marxismo e teoria da literatura. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio
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______. A
teoria do romance. São Paulo: Editora 34, 2000.
MORETTI, Franco. A cultura do romance. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
WATT,
Ian. A Ascenção do Romance:
estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo,
Editora Schwarcz, 1990.
[1] Graduada em Letras Espanhol, pela
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Graduanda do Curso de Licenciatura
em Letras Português da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria,
RS, Brasil.
[2] Professora do Curso de Licenciatura
em Letras Português da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria,
RS, Brasil.