As Epifanias das Crianças Roseanas, por Josoel Kovalski

A criança, a fase pueril do espírito humano – por excelência a da descoberta mais salutar e intrigante – é sem contradita o arcabouço dos descobrimentos mútuos, eficazes, dos que nos lembraremos pelos ulteriores momentos; são prelúdios do experimento da vida, das causas e efeitos do coração que se derrama em curiosas e constantes inquirições. Dessa fase o resultado será o adulto que investiga, ou não, os aspectos do circunvizinho mundo que contemplamos.

Quando crianças, sonhamos. Sonhos que se desdobram em vontades refletidas em experiências nem sempre agradáveis ao nosso caminhar, nosso tanger da via nebulosa da descoberta. Vivenciados os momentos, cabe-nos o respaldar de suas complexidades. Na criança este se dá em atmosferas mais ou menos abruptas de choques variáveis, de variantes da assimilação dos objetos contemplados e legitimados pelo sujeito que descobre. Sim, conhecer é, sobretudo, coisa de criança, não pueril no pejorativo da expressão, mas abarcar o mundo pelos flancos (e margens) é o que geralmente se dá. A criança é a prova-ponte do “segundo espírito” machadiano, que se identifica com determinados enlevos entregues, às vezes forçosamente, e deles faz o caminho do labor prazeroso. Sulcar esse caminho é efeito de um encontro notável e sagrado com a arte. A literatura é uma dessas veredas.

Ler para descobrir, para refazer o caminho. Sagrada são as epifanias, pois revelam, e o ponto de vista será endossado pela experiência. Notório é o que só acontece na vez primeira, mas o que tem também capacidade de se repetir, dadas as condições, para que o ato se processe. Quanto mais natural, menos esforço. Sem esforço o prazer se mostra claro. Sem prazer a leitura é castigo.

Descobrir é se prolongar, se corporificar na coisa descoberta (Heidegger). Ler, e descobrir é como semear e colher. O processo é viconianamente cíclico, porém as idades são uma só: no “ser criança” do adulto é que se descobre. Na criança é que se vive o que depois em adulto se valora. Só depois de adultos nos vemos o quão curiosos éramos. O pesquisador, o ente que procura a descoberta, que inquire e investiga nada mais é que um ente que se dá ao luxo de se voltar criança numa mente carregada de experiências. A idéia, em princípio antitética, torna-se simples lugar-comum – mas nem por isso menos verdadeira: os mais sábios reconhecem que a criança é o apreendedor e a ela volta em alma quando o assunto é querer saber mais. Volta mesmo que inconscientemente, como a noite e o jasmim de Gullar, iluminando num lampejo único toda uma cidade.

Construímos cidades de conceitos cristalizados e nos movemos nelas pelos mesmos caminhos invariáveis. Construímos prisões, castelos murados em nossas salas adornadas pela janela deslocada da mídia. Deslocados nos vemos em cidades deslocadas construídas por nossa indulgente vontade de ser o que nos apregoam, de consumir e vencer na vida por outrem a nós idealizadas. Mas não sonhadas. Perdemos a capacidade do sonho? Essa criança é só lembrança pálida de um passado geralmente melhor? A idéia é romântica. O homem se quer grave e fatal em seus imediatismos. Sonhar ficou pra infância.

“Esperar é reconhecer-se incompleto”, diria Guimarães Rosa. O grande escritor brasileiro iria desbravar a terra das descobertas infantis e os reflexos que elas produziriam em suas personagens. Meninos e meninas, crianças complexas que aprendem e evoluem significativamente ao longo de suas estórias seriam abordadas caindo não somente do âmbito da descrição comum, mas do fluxo permanente da descoberta dos tempos primaveris. Crianças que esperavam por soluções e respostas, mas também (e, sobretudo) que questionavam além do simples perguntar. Perguntavam de si para si. “As nuvens são para não serem vistas”, diz o texto roseano, nuvens de questionamento que transcendem o puro regurgitar de porquês, mostrando que as crianças em Rosa têm uma ascensão considerável pela epifania que os fatos nelas ocasionam: meninos que não entendem mas que buscam em seu imo a tentativa de solução, descritos por um narrador infantilizado momentaneamente para ao nível dos pensamentos dos pequenos a nos alertar que a identificação entre leitor e personagem será imediata.

“Mesmo um menino sabe, às vezes, desconfiar do estreito caminhozinho por onde a gente tem de ir – beirando entre a paz e a angústia.” Desconfiar é não concordar automaticamente com uma verdade prontamente entregue, é modo de a criança ver o mundo independente dos conceitos regentes e há muito solidificados. Quem desconfia o faz com um quê de revelação não explícita (nuvens), mas que existe a dúvida, não cartesiana, mas dúvida, desconfiança.

Na própria precisão com que outras coisas lembradas se oferecem, de entre impressões confusas, talvez, se agite a maligna astúcia da porção escura de nós mesmos, que tenta incompreensivelmente enganar-nos, ou, pelo menos, retardar que perscrutemos qualquer verdade. (ROSA, 1988, p. 48)


Coisa que, ontologicamente, se esconde e se mostra; lembranças e reverberações do mundo do real mesclado ao imaginário, treva que às vezes nos impede de alcançar a verdade momentânea para a liberação de nosso movimento entre essas mesmas coisas. Dois entes que se debatem: o oferecimento da lembrança e as impressões (confusas) da mente em vontade de entender; paz e angústia que gera movimento, dialogicamente o texto conversa com nossas próprias impressões gratuitas, deixando-as instáveis. A epifania é descoberta que faz a movimentação do ser (e da personagem), é complexidade que encontraremos nas personagens, é reconsiderações acerca dos assuntos os mais diversos que, pela simplicidade, nos esquecemos de neles nos aprofundar. A criança roseana nos convida que participemos do intrincado mundo de conceitos voláteis que se desfazem ante o sopro da confrontação real e tentativa de entende-lo ocasionam.

A epifania descrita por Joyce em “O retrato do artista quando jovem” é aprofundada em meninos roseanos e em temas seculares nos seus contos, mas sempre atuais a esses homens que em condição se igualam aos que questionavam o mundo desde os tempos primevos.

“A gente cresce sempre sem saber para onde”. Mas cresce de fato também a tentativa de querer crescer pra acomodar conceitos, crenças, costumes, ideologias que orbitam e das quais não nos podemos livrar, tamanha é a força gravitacional de nosso comodismo e aceitação. A não-aceitação imediata é característica do Menino. Ela ocasiona a dúvida, a desconfiança, e depois se converte em aceitação, em experiência. “O Menino não entendia. A mata, as mais negras árvores, eram um montão demais; o mundo”. (ROSA, 1988, p.11).

Relegadas a condição de aceitadores estão as crianças. Devem aceitar para compreender o universo a elas mostrado: o único universo possível, o do adulto. Ele (o adulto) escreve para elas. Ele dita de seu ponto de vista. Quando faz o texto para os jovens quer se automatizar, se plasmar numa criança em óptica, portanto artificial, e não em essência, como Rosa, o que culmina na criança adulta que lê seus textos e com eles se identifica. Não era pretensão do autor escrever aos pequenos, mas (também) mostrar que o pensamento epifânico neles acontece a todo o tempo. Talvez por não ser juvenil que a criança de Guimarães Rosa só é entendida pelos adultos, quando entendidas. Infantil é a época, o ensino, o confrontar as descobertas. O processo é inverso: não é a criança que descobre pelo adulto, mas nós adultos que descobrimos e relembramos descobertas com essas crianças roseanas.

O Menino que descobre o peru galante também descobre a morte e o afastamento, descobre que as alegrias nem sempre duram muito, que as aparências podem enganar. Esse Menino evoca toda uma consciência de descobertas no leitor, dialogamos nossas próprias epifanias com a acima relatada. O conceito de alegria na mente dele se alterou, e ao lermos o texto, também na nossa.

Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era: já o vir da noite. Porém, o subir da noitinha é sempre sofrido assim, em toda a parte. O silêncio saía de seus guardados. O Menino, timorato, aquietava-se com o próprio quebranto: alguma força, nele, trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe alma. (ROSA, 1988, p. 11)


Nossa mente se esforça por acomodar os novos conceitos e experiências que as epifanias nos colocam. Mas se há a descoberta e ela nem sempre é agradável, há também e consequentemente a tristeza causada pela saudade dos melhores tempos. Metaforicamente o autor coloca o dia e a noite, a penumbra, o “subir da noite”. Em “As margens da alegria” essa imagem é constante, a hora em que não podemos divisar com precisão os fatos. Relembramos coisas que podem enganar a mente por falta de clareza (ou claridade), até os próprios conceitos e idéias que por não estarem claros nos levam à incerteza: “Mal dava para se ver, no escurecendo”.

Nebulosas às vezes são as lembranças, como em Graciliano. Nuvens ou penumbras bloqueiam o conhecimento, mas incitam a imaginação. O confrontar dessas e sua conseqüente ligação ocasionam o desconforto, embora nos dê força para as vivências futuras. Talvez viver seja contemplar as margens do rio da alegria, mas sabendo que estamos à margem.

Bibliografia
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Parte I. Petrópolis: Vozes, 2002.
JOYCE, J. Um retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
ROSA, J. G. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
ROSA, J.G. Tutaméia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.